Antes de eu efetivamente sentar para jogar Omikron: The Nomad Soul para esta review, eu só sabia o que a maioria das pessoas sabe sobre esse jogo: este é o jogo do David Bowie. Ziggy Stardust: The VideoGame. O delírio febril onde o Duque Branco Fininho de alguma forma desceu a uma forma poligonal para fazer uma serenata para os gamers entre as lutas de chefe.
Mas aqui está o que me chocou ao descobrir depois que joguei o jogo: Bowie pode ter sido o outdoor colado na frente da caixa, mas Omikron não é "David Bowie: O Videogame". Longe disso. Sim, ele está lá — sim, ele dubla um personagem e, sim, contribuiu com cerca de dez faixas originais para a trilha sonora — mas é só isso. Ele não arquitetou a história, não propôs o conceito, não desceu de um raio com um design doc visionário em mãos. Ele foi pago, entrou numa cabine por algumas semanas, gravou algumas falas e músicas, e foi para casa. E, honestamente? As músicas nem estão entre os melhores trabalhos dele. (Eu sei, eu sei — heresia — mas só posso contar o que meus ouvidos me disseram.)
... mas, se este não é o tão perdido magnum opus de Bowie, que diabos é esse jogo então?
O que nos leva à revelação número dois, que, sinceramente, me chocou mais do que a primeira. Omikron é, na verdade, o jogo de estreia de alguém que — ame-o, odeie-o ou faça memes dele — você não pode negar que tem uma das vozes autorais mais reconhecíveis nos games modernos. Este foi o primeiro jogo de David Cage. Sim, aquele David Cage.
[ESPERA... O FAMOSO QUEM?]
Certo, vamos começar do começo. Velhos cavalos de guerra das trincheiras de videogame como eu conhecem o nome David Cage da mesma forma que você conhece Kojima ou Miyamoto. Mas para os leigos (que, sinceramente, nunca em um milhão de anos estariam lendo esse blog, mas divago), suponho que uma introdução é necessária.
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Capa europeia do jogo |
David Cage é... bem, não é o seu tipo comum de desenvolvedor de jogos. Ele nunca se interessou realmente nessa visão que jogos são um tipo de brinquedo, ou um passatempo. A filosofia de Miyamoto e seus parquinhos felizes de mecânicas. Cage é feito de um material completamente diferente. Ele não projeta "brinquedos". Ele nem sequer projeta "jogos" no sentido tradicional. O que ele almeja é algo mais difícil de definir: experiências interativas que oscilam na linha entre cinema e jogabilidade.
Agora, os críticos costumam diminuir o trabalho dele como nada mais do que "filmes interativos", o que implica que ele é um cineasta frustrado que não conseguiu se dar bem em Hollywood. Mas isso não é uma descrição muito precisa. Cage não está perseguindo o sonho de dirigir blockbusters — ele está perseguindo a ideia de contar histórias como uma nova fronteira tecnológica. Ele quer inventar um novo meio, um espaço híbrido onde escolhas ramificadas, captura de movimento e apresentação cinematográfica se fundem em algo que você não pode simplesmente sentar e assistir. Você tem que viver isso.
Nas últimas duas décadas, Cage e seu estúdio — a Quantic Dream — dobraram a aposta nessa visão. Quer você o ame, o odeie ou o faça virar meme até a morte, você pelo menos ouviu falar dos jogos dele. E se você acha que não, você quase certamente viu um gif "Aperte X para Jason" circulando pela internet. Os títulos mais recentes dele, Beyond: Two Souls e Detroit: Become Human, foram grandes sucessos comerciais, garantindo que, mesmo que você nunca os tenha jogado, a osmose cultural provavelmente te alcançou em algum nível.
Mas antes de tudo isso veio Omikron. Esta foi a sopa primordial onde David Cage tentou, pela primeira vez, moldar sua grande visão. E quando digo que Omikron foi uma "grande visão", eu estou falando bem sério: Cage concebeu o jogo pela primeira vez em 1994, depois de ficar inquieto com seus quinze anos de carreira como compositor. Ele queria largar a composição de jingles e trilhas de fundo — porque convenhamos que quando vc percebe que o trabalho mais marcante da sua vida é a música da fase 4 de TIMECOP... bem, nenhum juri do mundo o condenaria por querer mais.
O problema é que ele não era exatamente um prodígio da programação. Mas Cage tinha a teimosia ao seu lado. Nos anos seguintes, ele redigiu um roteiro que inchou para quase 200 páginas, convenceu amigos na industria dos games a ajudá-lo a construir um engine e protótipo personalizados e queimou suas economias no processo. Por um tempo, parecia que este projeto ambicioso poderia morrer em sua mesa junto com uma pilha de contas não pagas.
Mas ele se recusou a desistir. Cage dedicou os anos seguintes inteiramente a perseguir esse sonho, aguentando até conseguir apresentar sua demo para a Eidos em 1997. A empresa britanica ficou tão impressionada que assinou o contrato no dia seguinte, e esse contrato transformou sua visão rabiscada em um guardanapo para um jogo real, e em 1999 o resultado foi Omikron: The Nomad Soul. Em entrevistas nos anos posteriores, David Cage disse que seu objetivo com Omikron era criar "uma experiência semelhante a um filme com imersão total" e uma jogabilidade que desafiaria as convenções tradicionais. Bem, não é esse o objetivo dele todo jogo?
Então, a essa altura, você provavelmente está imaginando Omikron como o protótipo de 1999 de um jogo da Quantic Dream: forte foco narrativo, caminhos ramificados, mínimo de "jogo" no sentido de apertar botões para fazer as coisas acontecerem (exceto se for em um QTE). Em outras palavras, um rascunho dos jogos da QD que todos conhecemos hoje.
Exceto que não. Nem remotamente perto.
Por que tem o seguinte: em 2025, David Cage é David Cage. Ele tem seu próprio estúdio, sua própria reputação, e se ele propusesse um jogo sobre um cavalo morrendo que está relembrando sua vida em preto e branco, eventualmente alguém lhe daria um cheque em branco. Esse é o poder da marca.
Mas em 1999 ele não era David Cage... bem, tecnicamente era, não é como se o nome dele na época fosse Abílio Apalooza, mas meu ponto é que ele ainda não era uma marca. Ele era apenas um Zé Ninguém com um sonho, um roteiro de 200 páginas e um contrato com a Eidos. E a Eidos não estava muito interessada em financiar algum experimento excêntrico de "filme interativo" vindo de um completo desconhecido. Eles queriam algo que se encaixasse no mercado, algo reconhecível, algo que você pudesse, de fato, vender.
É por isso que Omikron acabou sendo, paradoxalmente, o jogo mais "normal" que David Cage já fez. Claro, as digitais dele estão lá — momentos de estranha ambição, indícios daquela obsessão por narrativa cinematográfica — mas sob o olhar vigilante da Eidos, ele teve que seguir as regras de quem estava pagando as contas. O resultado é um híbrido bagunçado, ainda que curioso: as grandes ideias de Cage se debatendo contra a camisa de força do design de jogos do final dos anos 90.
A maior parte da jogabilidade de Omikron é essencialmente um walking simulator — exatamente o que você esperaria de um jogo de David Cage. Você vagueia pela cidade, fala com pessoas, coleta pistas, guarda chaves aleatórias e lentamente junta a próxima migalha de pão na trilha da sua investigação.
E kudos onde kudos são devidos: a cidade cyberpunk de Omikron é realmente bem grande para a época. Não crie expectativas — este não é Cyberpunk 2077 (na verdade nem chega a ser um URBAN CHAOS) — mas a cidade é vasta, variada e salpicada com pontos de interesse suficientes para fazê-la parecer viva. O sistema de viagem rápida também ajuda: depois de visitar um local ou aprender seu endereço, você pode chamar um táxi de qualquer lugar e ir direto para lá. Conceitualmente, é suave e eficiente.
Infelizmente, a execução do deslocamento é tudo menos suave e eficiente. Os controles são desajeitados a um ponto do ridículo, mesmo para os padrões de 1999. Mover-se parece tentar dirigir um carrinho de supermercado com uma roda quebrada, e esse é um daqueles jogos que vc luta mais contra os controles do que contra os inimigos.
E falando em inimigos — é aqui que a Eidos interveio e bateu o punho na mesa: "Um jogo onde você só fala com pessoas e coleta coisas? Com o nosso dinheiro? MAIS NEM FOUDENDO!". Então, eles exigiram ação. E ação você teria — quer queira ou não. É assim que Omikron acaba recheado com seções de FPS e segmentos de jogo de luta um contra um, encaixados com a mesma elegância de um tijolo através de um vitral.
O resultados é mais ou menos o que você esperaria. A luta é tão ruim que poderia competir com RISE 2: Ressurection, e os momentos de FPS são, na melhor das hipóteses, dolorosamente medíocres. Nada disso se harmoniza bem com o resto do design, e você praticamente consegue ouvir Cage rangendo os dentes toda vez que o jogo te força a uma briga ou a um tiroteio.
Então, o que Omikron realmente é? É parte walking simulator, parte jogo de luta de última prateleira e parte FPS da Shopee. Um monstro de Frankenstein costurado a partir de visões conflitantes — o sonho de imersão de David Cage de um lado, e a insistência da Eidos em "jogabilidade de verdade" do outro. E as costuras aparecem.
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Mano, se vc realmente PRECISA colocar um jogo de luta no seu game, pelo menos tenha a decencia de colocar a camera de lado para vc pelo menos |
Felizmente, os segmentos de luta não são tão comuns (louvado seja Arceus, ou estaríamos olhando para outra catástrofe nível SPAWN: The Eternal). A maioria dos jogadores que ainda se lembra de Omikron não pensa nas brigas desajeitadas ou nas seções fracas de FPS — eles se lembram da investigação. E, para ser justo, é aqui que o jogo realmente se sente mais confortável.
Funciona assim: a primeiríssima cena quebra a quarta parede. Um personagem literalmente olha para você — o jogador — e avisa que, ao iniciar o jogo, você essencialmente transferiu sua alma para o mundo de Omikron. Não apenas para o corpo do protagonista, mas para o próprio jogo. Esses termos e condições dos jogos que a gente aceita sem ler, eu te digo...
A partir daí, você assume o controle de Kay’l 669, um policial que investigando uma série de assassinatos horríveis junto com seu parceiro. Não demora muito para que eles descubram a verdade: não são apenas assassinatos aleatórios. As vítimas estão sendo dilaceradas por demônios literais que andam entre os cidadãos de Omikron.
Notícia ruim: Kay’l não sobrevive à descoberta.
Notícia boa: como Kay'l bateu as botas, sua alma pula para o corpo dele e continua o caso. A partir desse ponto, sua missão se torna desvendar o quão profunda essa corrupção demoníaca se estende pelas instituições de Omikron. (Spoiler: muito.)
Mas não espere um mistério cyberpunk padrão de Sherlock Holmes. Este não é um jogo de detetive feijão-com-arroz com decoração de neon. Longe disso. Omikron leva sua mecânica central de possessão em direções estranhas e imprevisíveis — o título "A Alma Nômade" não está lá apenas para soar maneira — embora, sejamos honestos, soa incrivelmente maneira. É, na verdade, a mecânica central do jogo. Você pode, literalmente, saltar com sua alma para outros cidadãos de Omikron.
No início, isso não é algo que você controla. Quando você morre em certos momentos da história, sua alma simplesmente encolhe os ombros, diz "É, tentei. Já deu com esse cara" e passa para o próximo hospedeiro disponível. Mais tarde, porém, você ganha acesso a uma magia que permite trocar de corpos de forma mais deliberada.
Agora, já posso ouvir as três pessoas lá atrás pensando: "Espere, eu já não fiz isso em MESSIAH?" Bem... tecnicamente sim, mas não realmente. Até porque ninguém se lembra de MESSIAH de qualquer maneira. Seja como for, a semelhança é superficial: ambos os jogos permitem que você possua corpos diferentes para obter vantagens específicas (como acessar áreas restritas). Mas em Omikron, a execução está em uma escala totalmente diferente. É aqui que você entende onde a maior parte do roteiro de 200 páginas de David Cage foi parar.
Porque aqui está a coisa surpreendente: a maioria dos cidadãos de Omikron não são apenas manequins vazios esperando para serem usados. Eles têm suas próprias agendas, diálogos únicos, até mesmo relacionamentos pessoais que se espalham pela cidade. A pura ambição por trás desse sistema é de cair o queixo. Ao contrário de MESSIAH, onde a troca de corpos é uma ferramenta puramente utilitária, Omikron tenta fazer você sentir que está escorregando para dentro de vidas reais e vividas. E em um jogo de 1999 isso não é apenas ambicioso — beira a insanidade.
Eu posso estar enganado aqui, mas sinceramente considero Omikron a primeira tentativa real de uma "cidade viva" em um jogo. Ele é anterior aos cidadãos de Clock Town em THE LEGEND OF ZELDA: Majora's Mask — que seguem rotinas rigorosamente roteirizadas ao longo de três dias — por quase um ano. E embora eu entenda de que grande parte da movimentação de Omikron é fumaça e espelhos, cuidadosamente roteirizada para criar a ilusão de atividade, o efeito funciona para a época.
Caminhe pela cidade de Omikron e você verá pedestres vagando pelas ruas, entrando em edifícios e vadiando em praças como se tivessem tarefas próprias. Você pode enfiar a cabeça em apartamentos, explorar becos ou simplesmente rodar por aí com a multidão. Hover-táxis zunem pelo ar, transportando cidadãos entre distritos em um borrão de alta tecnologia, enquanto a sinalização de neon pisca acima de você como se a própria cidade estivesse respirando. Para 1999, é chocantemente ambicioso.
E depois há o cenário em si. Omikron não é apenas alguma metrópole cyberpunk aleatória. Está selada sob uma cúpula enorme porque o planeta lá fora está preso em uma era glacial permanente. Sobre essa expansão urbana claustrofóbica, preside um governo totalitário administrado por — porque é claro que sim — um supercomputador. Os cidadãos estão presos neste ecossistema artificial, fazendo malabarismos com a rotina diária da vida distópica enquanto uma série de assassinatos relacionados a demônios se desenrola silenciosamente nas sombras.
O que é impressionante é que o jogo nunca despeja sua bíblia de lore de 200 páginas no seu colo em algum monólogo maciço. Não há "aperte X para ouvir um sermão por um NPC de exposição". Em vez disso, você a descobre gradualmente — vagando, ouvindo, pulando para as vidas de outros cidadãos. Para juntar o que realmente está acontecendo em Omikron, você tem que viver isso.
E essa é a mágica: apesar da tosquice das mecanicas, apesar das arestas, a cidade parece viva de uma forma que poucos jogos daquela era sequer ousaram tentar. Então... onde isso nos deixa? Honestamente, me lembra muito outro experimento que também saiu no Dreamcast: SHENMUE. Ninguém em sã consciência pode negar que SHENMUE é incrivelmente ambicioso — o puro esforço que a Sega dedicou à recriação de uma cidade viva e respirante é insana até mesmo para os padrões de hoje, que dirá 1999. Mas, depois que você supera essa maravilha inicial, bem... vamos ser educados e apenas dizer que a jogabilidade é uma porcaria. A história principal é basicamente um filme de kung fu, e nem é um bom — mais como um filme B direto que passaria na Sessão Kickboxing da Band as 2 da manhã de terça-feira.
Omikron segue essa mesma batida. A ambição e a construção de mundo que David Cage enfiou nessa coisa são impensáveis para 1999. Mas jogar de fato nesta cidade não é nem de perto tão divertido quanto imaginá-la. Os controles de caminhada são uma droga, o combate FPS é horrível, e as mecânicas de luta fazem você sentir falta dos outros dois. Mesmo o enredo central não é tão atraente quanto o lore ao redor dele. Demônios criando uma cidade virtual dentro de um videogame só para roubar a alma do jogador — e sim, quero dizer literalmente você — não é profundo, é apenas bobo. Você nunca tem a sensação de que todo esse lore intrincado foi bem utilizado.
O resultado final é que eu genuinamente respeito a ambição aqui. O que Cage tentou fazer estava à frente de seu tempo. Mas o que ele efetivamente fez... meh, nem tanto. A boa notícia é que David Cage não parou por aqui. Ele continuou cinzelando a mesma ideia nas três décadas seguintes, refinando o conceito de narrativa fragmentada contada através de múltiplas perspectivas. Com o tempo, aqueles rascunhos grosseiros se transformaram em narrativas com mais peso emocional, apostas mais altas e muito mais qualidade na escrita. Quando você olha de perto, o espírito do "nomadismo da alma" de Omikron está bem ali no DNA de Heavy Rain, onde a história respira através de várias vidas diferentes, ou em Detroit: Become Human, onde múltiplas perspectivas se combinam em algo maior do que qualquer ponto de vista único poderia alcançar.
Então, não, não posso chamar Omikron de um grande jogo. Mas posso chamá-lo de um começo. É um primeiro passo audacioso e imperfeito, o tipo de trabalho nascido de paixão teimosa e da crença de que os jogos poderiam ser mais do que apenas entretenimento. E embora seus defeitos sejam óbvios, sua ambição é inegável. Sem ele, talvez nunca tivéssemos tido aquelas obras posteriores que nos desafiaram ao menos a questionar do que este midia seria capaz e até onde ela poderia ir um dia.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMESEDIÇÃO 141 (Julho de 1999)