domingo, 19 de outubro de 2025

[#1575][Jun/2000] DEUS EX (ou "Deus Ex: The Conspiracy" no PS2)


Olha, acreditem ou não, eu me considero uma pessoa otimista. E sim, eu consigo te ouvir rindo daí, Jorge... mas escuta só. Eu genuinamente tento tirar o melhor das coisas — ver algo bom mesmo no meio de um desastre monumental. Cada falha, cada tropeço, sempre carrega consigo a semente do aprendizado. Até os piores erros podem virar a fundação para algo melhor da próxima vez. Não é um processo fácil — nunca rápido, nunca indolor — mas lentamente a gente tá avançando. Eventualmente até as coisas ruins nos ajudam a crescer. Afinal, chegamos a um ponto em que uma pessoa comum hoje tem mais conforto, saúde e segurança do que um rei da Idade Média jamais sonhou. O progresso pode tropeçar, mas ele avança.

E por que eu estou falando isso? Porque a história de hoje é um dos arcos de redenção mais bonitos da história dos videogames. É um conto que começa em desastre, humilhação e soberba — mas termina em triunfo, respeito e legado. Uma história de como um estúdio se ergueu não das cinzas, mas do inverno nuclear que ele mesmo criou, transformando seu nome de piada da indústria em um símbolo de orgulho.

Esta é a história da Ion Storm e como, do caos e da arrogância, eles criaram um dos jogos mais brilhantes já feitos.


Mas vamos começar do começo. 
Eu já contei, neste mesmo blog, a longa e dolorosa história do pesadelo absoluto que foi JOHN ROMERO'S DAIKATANA, e recomendo fortemente que você leia — porque, acredite, é uma história e tanto. Mas como sei que a maioria de vocês não vai (não pense que eu não vejo o analytics dessa bagaça), aqui vai a versão resumida:

John Romero, o gênio rockstar por trás do design de níveis de nada menos que DOOM e QUAKE, acabou se desentendendo com seus colegas na ID Software. Então, na grande tradição dos gênios criativos, ele decidiu seguir carreira solo e fundou seu próprio estúdio — a Ion Storm — com sonhos de revolucionar a indústria.

O problema era... John Romero era um monstro como designer de níveis, mas não sabia absolutamente nada sobre gerenciamento, orçamento, ou mesmo tinha os instintos básicos de sobrevivência do empreendedorismo. O que se seguiu foi um estudo de caso completo de como NÃO fazer um videogame. Foi a tempestade iônica perfeita de ego, má gestão e ambição desenfreada — completa com escritórios luxuosos em coberturas, prazos impossíveis e campanhas de marketing que prometiam a lua antes mesmo de terem construído o foguete.

O resultado foi um desastre tão monumental que se tornou uma lenda urbana que as mamães desenvolvedoras contam para seus filhinhos desenvolvedores ao coloca-los para dormir: JOHN ROMERO'S DAIKATANA.

Sim, aquele Daikatana.
Aquele que prometia "te fazer a vadia dele
É... esse mesmo.


Bom, como eu disse, aquilo não foi só um desastre — foi um evento de nível de extinção. Eu não consigo exagerar o quão catastrófico 
JOHN ROMERO'S DAIKATANA realmente foi (e acredite, eu tentei — já escrevi cinco mil palavras sobre isso). Mas essa é uma história que eu já contei. O que eu não contei ainda é o que veio depois, porque — de alguma forma — houve um "depois".

A parada é a seguinte: o acordo de publicação da Ion Storm com a Eidos não era só para Daikatana. Era um contrato que prometia seis jogos. Seis! Agora, você pode estar pensando — e tenho certeza que muita gente na Eidos pensou o mesmo — "Não seria melhor só... deixar isso pra lá? Tipo, só fingir que nunca aconteceu?". Quer dizer, eram os mesmos caras que tinham acabado de punir o mundo com JOHN ROMERO'S DAIKATANA. Alguém realmente, realmente queria mais cinco Daikatana Jr. por aí? Sério?

Mas então, não é assim que os negócios funcionam. Um contrato assinado é um contrato assinado — e um bem caro, por sinal. A Eidos tinha afundado milhões na Ion Storm, e eles precisavam de algo para mostrar. Então, decidiram salvar o que quer que ainda pudesse flutuar daquela lixeira pegando fogo. Entra Warren Spector — o cara mais sensato da Ion Storm inteira. O adulto na sala. A Eidos o abordou com o que só posso imaginar ter sido o apelo mais diplomático da história dos games:

Cara... olha, o desenvolvimento do Daikatana tá... complicado, vamos colocar assim. Que tal a gente, uh, te colocar em algum lugar bem longe do nosso amigo visionário, e você trabalha em alguns dos outros jogos que nos devem?

E foi assim que aconteceu. Enquanto o desastre do Daikatana continuava a sair de controle em Dallas, a Ion Storm silenciosamente montou um segundo estúdio — Ion Storm Austin — a uns bons 300 quilômetros de distância. Longe o suficiente para evitar os estragos, mas perto o suficiente para tecnicamente ainda estar sob o mesmo teto. A missão da Ion Storm Austin era trabalhar naqueles misteriosos "outros jogos" que a Eidos ainda esperava.

Mas espera aí — que outros jogos?


Warren Spector podia não ser um rockstar visionário como John Romero, mas ele realmente sabia como fazer jogos. Na verdade, ele era provavelmente a única pessoa em todo o escritório da Ion Storm que tinha alguma ideia real do que "pipeline de produção" ou "prazo" significavam. O currículo dele como produtor era basicamente uma lista matadora de clássicos de PC dos anos 90: 
WING COMMANDER, vários títulos da série ULTIMA e, ah, claro, SYSTEM SHOCK — um jogo que praticamente inventou o gênero "immersive sim" antes que alguém tivesse um nome para isso. Agora isso é um currículo ou o que?

Então, o que Warren fez? Ele tomou a decisão mais inteligente que alguém poderia tomar naquelas circunstâncias: reconheceu que John Romero — com todas as suas excentricidades, ego e outdoors ocasionais "fazendo vadias" — ainda era um gênio à sua maneira.

E aqui está a coisa que a maioria das pessoas esquece: o conceito original por trás de Daikatana não era nada ruim. Pelo contrário. Romero imaginou um híbrido entre um jogo de tiro em primeira pessoa e um RPG, completo com atributos, skills, escolhas morais, lore profundo, NPCs significativos e jogabilidade que misturava estatísticas, combate corpo a corpo, magia e armas. Era uma ideia incrivelmente ambiciosa — o tipo de coisa que estava vinte anos à frente do seu tempo.


O problema era que uma ideia assim estava REALMENTE vinte anos a frente do seu tempo e Romero não tinha
ideia de como codificar aquele monstro para torna-lo real. Sua imaginação estava a anos-luz à frente da tecnologia disponível — e, francamente, das capacidades de seu próprio estúdio. Mas se ele tivesse conseguido... cara, teria sido um dos maiores e mais inovadores jogos já feitos.

Warren Spector, no entanto, entendia algo vital: ambição por si só não faz um grande jogo. Execução faz. Ele sabia que não devia se jogar de cabeça num projeto que estava muito além de seus recursos e habilidades... a menos que pudesse encontrar uma maneira de conseguir essas habilidades de outro lugar.


No final de 1999, a situação financeira da Looking Glass Studios era terrível. Seus dois jogos THIEF: The Dark Project e THIEF 2: The Metal Age eram obras-primas genuínas. Jogos que redefiniram a furtividade, a atmosfera e o level design de maneiras que a indústria usa essas bases até hoje. Mas a coisa é que estar à frente do seu tempo não paga o aluguel.

Como Nietzsche disse certa vez: "Alguns homens já nascem póstumos."
Bem, alguns jogos também.

A série Thief influenciaria todo o mundo dos videogames, mas ser reconhecido como um clássico absoluto 20 anos depois não ajudava muito na hora de pagar a conta de luz em 1999. As vendas foram modestas, os investidores estavam nervosos e, eventualmente, o inevitável aconteceu: demissões.

Warren Spector, que já havia trabalhado com muitos dos veteranos da Looking Glass em SYSTEM SHOCK, não pensou duas vezes. Ele viu talentos sangrando de um estúdio moribundo e abriu os braços. Ele trouxe algumas das melhores mentes por trás de Thief — os programadores, os designers, os gênios silenciosos que entendiam de sistemas imersivos melhor do que ninguém na Terra. E se havia alguma equipe capaz de pegar o sonho meio maluco de John Romero — a mistura de FPS e RPG, escolhas morais, construção de mundo profunda e jogabilidade emergente — e realmente fazê-lo funcionar, era essa.

Seria preciso nada menos que um deus para conseguir isso.
A Ion Storm Austin nos deu um Deus.
Deus Ex.


O ano é 2052. O agente novato JC Denton recebe sua primeira missão: terroristas tomaram a Estátua da Liberdade — dramático, público, ideal para uma manchete — e estão fazendo quaisquer exigências que terroristas costumam fazer. Seu trabalho não é fazer perguntas. Seu trabalho é trazer LIBERDADE E JUSTIÇA... especificamente do tipo calibre .30-mm. Resumindo: atire primeiro, faça os fabricantes de sacos para corpos felizes e só então perguntas depois.


Só que JC não é um novato comum. Ele foi feito para este trabalho. Literalmente. Ele se lembra de ser treinado desde a infância: seu corpo foi cirurgicamente aprimorado para que ele pudesse ser a máquina policial cyberpunk definitiva. CASCA-GROSSA. Nano, metal e uma lista de habilidades — perfeito para combater o crime e parecer muito maneiro enquanto faz isso.

Então: primeira missão. Retomar a Ilha da Liberdade, neutralizar os hostis e fazer as funerárias faturarem. Simples, certo?


Exceto que... enquanto você se esgueira pelas entranhas enferrujadas da estátua e espia os terroristas — e até mesmo seus colegas agentes da UNATCO (
United Nations Anti-Terrorist Coalition)  — você ouve uma história diferente. Os homens na ilha não estão apenas agitando bandeiras e gritando sobre ideologia. Eles estão ocupados carregando barris e caixotes de algo chamado "Ambrosia" para barcos que esperam no píer. Toneladas disso. Tudo sobre a operação deles grita contrabando, não espetáculo.

Ambrosia. Com um nome desses, você espera drogas chiquetosas, certo?
Errado. Ambrosia é uma vacina.

Em 2052 está rolando uma pandemia chamada "Morte Cinzenta", um tipo super letal de lepra que causa necrose da pele e órgãos internos. A vítima sente tanta dor que dias antes de morrer ela implora pra ser morta. É... desagradável, vamos colocar assim. Existe uma cura — uma vacina que pode pará-la — mas a produção e distribuição são rigidamente controladas. Quem está recebendo prioridade? Áreas estratégicas, funcionários do governo e os ricos. O resto da cidade é deixado para apodrecer. Enquanto isso, as ruas estão cheias de pessoas literalmente apodrecendo de Peste Cinzenta.


E o objetivo dos terroristas? Contrabandear Ambrosia para fora de Nova York e distribuí-la onde ela é realmente necessária. Hã, de repente os parâmetros da missão começam a parecer um pouco... né? Você foi enviado para parar "terroristas", mas as pessoas que você está matando estão tentando distribuir um remédio que salva vidas para os desesperados. Isso é terrorismo doméstico ou o SUS mais agressivo de todos os tempos?

As ordens da UNATCO, entretanto, não abrem margem para discussão: armas liberadas, sem prisioneiros. Sem misericórdia. Sem nuances. Depois que o objetivo principal é concluído, você observa soldados executando rebeldes rendidos como se fossem algo contagioso. Eles atiram primeiro e explicam depois — se é que se dão ao trabalho de explicar.

E nesse momento eu tinha perguntas. Muitas delas.


Então... que justiça exatamente eu estou aplicando? A liberdade de quem estou defendendo? Quando as pessoas com poder mantem a cura como moeda de troca e chamam qualquer um que a pega de terrorista, quem realmente é o vilão aqui? Eu me senti bastante o John Spartan em DEMOLITION MAN, um policial de um futuro em que os terroristas na verdade são uns ferrados que estavam mais preocupados em conseguir comida do que qualquer outra coisa. Gente, eu não realmente to sentindo que o sistema tá funcionando pra todo mundo aqui... o que não é tão diferente do mundo real, quando você pensa sobre isso.

E esse é apenas o primeiro nível.

Como você pode imaginar, as coisas ficam cada vez mais complicadas a partir daí — a ponto de, no nível três, eu era praticamente o cara daquele meme: "Hans... are we the baddies?". Porque, sério, eu não me sentia um herói. Meus alvos "terroristas" não eram CEOs gananciosos ou políticos corruptos — eram pessoas desesperadas tentando sobreviver enquanto sua pele literalmente apodrecia por causa da Morte Cinzenta. É difícil se sentir justo quando suas ordens soam menos como justiça e mais como eugenia.

Essa é uma abordagem muito incomum para um videogame em 2000... honestamente, mesmo para 2025. Existem jogos onde você joga como o vilão, claro, mas eles geralmente pendem mais para a caricatura. GRAND THEFT AUTO deixa você ser um maníaco homicida atropelando quantos pedestres vc quiser, sim, mas Deus Ex faz de você algo muito pior: o vilão que genuinamente acredita que é o herói.

Esse é o coração de Deus Ex — a percepção crescente de que você faz parte da própria máquina contra a qual pensava estar lutando. Você não é o herói solitário contra a corrupção; você é a corrupção, polido, cyberneticamente aprimorado e financiado pelo governo. O jogo não esfrega isso na sua cara — ele apenas deixa o peso de suas missões e as pequenas conversas em becos penetrarem lentamente até que toda a ilusão de heroísmo desmorone. E isso se liga diretamente ao tema central do jogo: teorias da conspiração.

Agora, cabe uma contextualização aqui: em 2000, esse ainda era um tema engraçado. Conspirações eram entretenimento, não ameaças existenciais à democracia. Os Illuminati comandando o mundo? A Majestic-12 escondendo aliens na Área 51? A gente costumava rir dessas coisas — era a linguagem de galhofagem da ficção pulpTHE X-FILES e convidados do Jô Soares completamente ablublé das ideias. Hoje, teorias da conspiração são o tipo de coisa que faz seu tio no Whatsapp se recusar a vacinar os filhos ou negar a existência de uma pandemia acontecendo lá fora.

O que Deus Ex faz é notável: pega toda aquela bobagem de chapéu de alumínio e a reimagina como uma teia coerente e global de espionagem, política e filosofia. O jogo misturou todas as principais teorias da conspiração do século 20 — governos-sombra, cabalas secretas, experimentos nanotecnológicos, controle da mídia —, adiciona críticas sociais muito relevantes sobre o poder do Estado e os limites éticos inexistentes do capitalismo e de alguma forma fez tudo funcionar.

O resultado não foi apenas um jogo de tiro sci-fi "nervoso"; foi um thriller político completo, denso, atmosférico e assustadoramente plausível. Parecia THE X-FILES reescrito por TOM CLANCY onde tudo se encaixava. Cada fio — da manipulação do governo à inteligência artificial — se entrelaçava em um mundo tão intrincado que poderia ficar ao lado de METAL GEAR SOLID ou mesmo dos próprios techno-thrillers de Clancy em termos de complexidade política.

É nada menos que incrível como Deus Ex conseguiu transformar algo que deveria soar bobo se explicado em voz alta... em uma das histórias mais inteligentes e complexas já contadas em um videojogo.


Mas se, lá em 2000, a construção de mundo de Deus Ex era nada menos que brilhante, jogá-lo pela primeira vez em 2025 foi absolutamente aterrorizante. A maioria das coisas que você ouve dos NPCs sobre a pandemia da Morte Cinzenta são literalmente as mesmas coisas que ouvi durante a pandemia de COVID-19. Ipsis literalis.

Ah, o vírus foi fabricado em um laboratório chinês.”
O governo poderia curá-lo instantaneamente, mas estão deixando se espalhar para controle populacional.”
Não precisamos gastar o dinheiro dos contribuintes com isso — a imunidade de rebanho resolverá eventualmente.”
E o clássico “Não existe ‘pandemia’; isso é só propaganda do governo para tirar nossos direitos”, que me foi dito por um NPC rico e protegido — logo depois de eu ter passado literalmente duas horas cercado por pessoas com metade do rosto faltando e tossindo sangue.

É realmente assustador como a Ion Storm pareceu viajar no tempo para prever o que as pessoas diriam durante uma pandemia real... mas não tão assustador quanto perceber que as pessoas realmente se comportaram exatamente como as teorias da conspiração mais pessimistas dos anos 90 diziam que elas se comportariam.


Ma va benne... agora que você tem uma ideia geral do que Deus Ex se trata, a próxima pergunta é: como você joga? E a resposta é ainda mais incrível — você joga Deus Ex... do jeito que você quiser.

Com isso, quero dizer que Deus Ex faz o seu melhor (dentro dos limites do que era tecnicamente possível no ano 2000, é claro) para se comportar menos como um videogame e mais como um RPG de mesa trazido à vida. Existe um cenário. Existe uma missão. O que NÃO existe é um jeito "certo" de abordá-la. Seja lá como você fizer funcionar, é com você amigão — o jogo apenas te dá as ferramentas para apoiá-lo.


Digamos, por exemplo, que há uma porta trancada com um teclado eletrônico. Uma maneira de lidar com isso é encontrar o código — talvez ouvindo conversas, hackeando um terminal ou achando uma nota com a senha rabiscada em algum lugar.

Outra maneira é apenas dizer "dane-se" e hackear o teclado.
Ou talvez você encontre um botão secreto escondido atrás de uma pintura.
Ou rasteje por um duto de ventilação.
Ou, meu favorito, fazer uma baguncinha gostosa lá fora para que os guardas saiam correndo para ver o que está acontecendo — e bam, a porta está escancarada.

E isso é só uma porta. Agora aplique essa mesma filosofia a níveis inteiros, a missões inteiras. O design do jogo se resume a um único e belo mantra: Não importa COMO você faz funcionar — se funciona, funciona.

A filosofia de design de Deus Ex em uma casca de nóz.

Videogames usualmente são programados com o desenvolvedor imaginando como você deveria jogar o jogo e te passando isso através das limitações no game design. Em SUPER MARIO BROS, Miyamoto quer que você vá para a direita e pule plataformas, em THIEF: The Dark Project a Looking Glass quer que você não engaje em combate e passe por tudo como uma sombra. Você pode não jogar da forma que o desenvolvedor imaginou? A resposta varia entre o "absolutamente não" e o "pode, mas eu não recomendaria": em SUPER MARIO BROS é literalmente impossível ir para qualquer lado que não a direita, em THIEF: The Dark Project o combate é tão terrivelmente ruim que vc se sente muito encorajado a evita-lo tanto quanto possível. 

Videogames não são desenhados como uma partida de RPG que o mestre descreve a cena e então apenas pergunta "o que vocês querem fazer?", existe um jeito certo de jogar pré-concebido na própria programação do jogo... exceto em Deus Ex. Aqui o jogo realmente te pergunta "o que você quer fazer?". E essa filosofia de design, veja, não se aplica apenas ao level design, mas também ao próprio combate.

Quer ir full Rambo, disparando espingardas na cara de todo mundo? Beleza.
Quer snipear inimigos a um quilômetro de distância? Vá em frente.
Quer se esgueirar, nocauteando as pessoas como em um Thief 3: Cyberpunk Boogaloo? Por que não?
Ou talvez pular a violência inteiramente e apenas deslizar pela missão como um fantasma invisível? Fique à vontade.

Esse é o ponto — Deus Ex deixa você escolher seu estilo de jogo e se comprometer com ele. Você pode jogar como quiser, mas não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Após os primeiros níveis, o jogo começa a exigir especialização através dos seus pontos de habilidade, melhorias de armas e aumentos cibernéticos. Não é sobre te prender em um caminho — você pode ser um sniper que é invisível para câmeras de segurança — mas especialmente em dificuldades mais altas, você precisa se dedicar a uma build, como em qualquer RPG que se preze. Você pode fazer qualquer coisa, mas não tudo ao mesmo tempo — essa é a pegadinha.


Mas a parte mais importante — e é aqui que
Deus Ex acerta onde JOHN ROMERO'S DAIKATANA falhou miseravelmente — é que tudo o que o jogo permite que você faça, ele faz excepcionalmente bem.

A furtividade é, no mínimo, tão boa quanto a de THIEF 2: The Metal Age — e talvez até melhor, já que os ex-veteranos da Looking Glass na Ion Storm claramente tinham mais orçamento para trabalhar desta vez. Cada sistema de jogabilidade, de atirar a se esgueirar, parece intencional e bem pensado. O tiroteio não deixa nada a desejar com QUAKE 2 em responsividade (na verdade, o jogo foi feito em cima da UNREAL Engine, o que ele faz rodar bem em computadores modernos até hoje, algo pelo qual eu sou bastante grato), e embora o combate corpo a corpo seja tão bom quanto vc poderia esperar do combate corpo a corpo de um jogo de primeira pessoa de 2000, ainda é surpreendentemente funcional. O level design que amarra tudo isso é nada menos que brilhante — uma clara evolução da já excelente arquitetura de THIEF 2: The Metal Age, agora expandida para ambientes vastos e interconectados que encorajam a experimentação e a exploração (tanto que aqui os pontos de experiencia não são dados por matar os inimigos, mas por cumprir missões e encontrar locais secretos).

Poucos jogos dessa época podem ostentar uma draw distance e hit detection tão precisas quanto Deus Ex. Quando você erra um tiro na cabeça que a mira na tela diz que vc você deveria ter acertado, não é porque o jogo errou na matemática — é porque seus stats/equipamento não eram bons o suficiente. E esse é um nível de integração de RPG que a maioria dos jogos de tiro até hoje ainda luta para alcançar.


Mas o que realmente me impressiona em
Deus Ex é sua insana quantidade de construção de mundo. Você não aprende sobre seu mundo apenas através de briefings de missão ou cutscenes — você vive nele. Você ouve conversas. Você hackeia computadores para ler e-mails pessoais. Você encontra datapads, notas descartadas, até mesmo livros físicos cheios de pequenos trechos que detalham a cultura, a política e os medos diários das pessoas que habitam essa distopia cyberpunk.

E a melhor parte é que o jogo nunca te sobrecarrega com isso. Ele elegantemente separa em uma aba o que é essencial — logins, passwords, pistas de missão — do "sabor" de fundo que constrói a atmosfera. Quanto mais você lê, mais percebe o quanto a Ion Storm pensou nesse universo. Quando eu disse que eles entrelaçaram uma dúzia de teorias da conspiração em um cenário rico e crível, não foi hipérbole. Cada linha de texto, cada bate-papo ocioso, cada datapad reforça a ilusão de um mundo oscilando entre controle e caos — um que parece perturbadoramente vivo.

Mas — e há um grande mas aqui — isso é um videogame, não um livro. Então, toda essa lore super-épica e expansiva não é só para ser vista. O mundo de Deus Ex não fica simplesmente parado esperando que você o leia, ele responde ao que você faz. A história realmente se ramifica dependendo de suas decisões: quais missões secundárias você completa (ou ignora), quais facções você escolhe ajudar e — o mais dramático — quem você decide poupar ou matar.

Tecnicamente, nada impede você de matar todas as almas vivas que encontrar, aliados incluídos. Mas o mundo se lembra. NPCs reagem de forma diferente a você dependendo da sua reputação, certas missões travam ou destravam, e até o final muda de acordo com seu rastro moral de destruição. Claro, ainda é um produto de seu tempo, e se nem Mass Effect 3 conseguiu agradar a todos com a promessa de "suas escolhas importam", não espere milagres de um jogo do ano 2000.

Ainda assim, o fato é: Deus Ex deu aos jogadores um nível de flexibilidade narrativa que estava a anos-luz à frente de seus contemporâneos. Descobrir que o irmão do JC poderia sobreviver — ele não sobreviveu na minha gameplay — ou que o diálogo de um bartender aleatório muda sutilmente porque você tem uma contagem de corpos maior que do MC Catra é bastante incrível.

Deus Ex é um jogo onde até os menores detalhes soam inteligentes. Cada datapad, cada conversa, cada filosofia que você encontrava parecia desafiar suas suposições. E mais do que isso — ele está ciente do que você faz. Ele se ajusta, silenciosamente, quase imperceptivelmente, como se o jogo estivesse vivo, prestando atenção ao seu comportamento como um mestre de RPG o faria. Em um nível micro, era maleável, reflexivo; mas perceber que ele poderia estender essa mesma capacidade de resposta para a história inteira é nada menos que deixar de queixo caído.

Então, como resumir adequadamente tudo o que Deus Ex é — tudo o que alcançou e acertou em cheio? Bem, farei minhas as palavras de Kieron Gillen para a revista PC Gamer UK da época. Ele colocou melhor do que eu jamais poderia:

Games—like most other forms of entertainment—have a terrible habit of making you less than you are normally, simplifying you into a stripped-down cartoon…Deus Ex is one of the few games that succeeds in making you more than you are. Because Deus Ex’s universe is, obviously, reduced, you feel as if you have more freedom than you do in reality, which, like Fight Club for example, reminds you of your own freedom in reality. It’s a slap in the face, it reminds us how good videoart can be. And this is art. It’s beautiful. And I’m going to stop now before I start to cry…
Sua influência na indústria é impossível de exagerar. A rara combinação de circunstâncias e liberdade criativa que o deu à luz é quase mítica agora — mas vinte e cinco anos depois, você ainda pode encontrar o DNA de Deus Ex em toda parte. Não apenas em seus sucessores espirituais óbvios na família dos immersive-sims (BioShock, Dishonored, Prey), mas na maneira como inúmeros designers falam sobre design de missão, agência do jogador e narrativa ambiental. O diretor de missões de Cyberpunk 2077, Mateusz Tomaskiewicz, em certa vez citou Deus Ex como uma influência formativa:

“Este teve um grande impacto em mim como desenvolvedor e jogador quando o joguei pela primeira vez, muitos anos atrás. E o que eu realmente gostava naquele jogo era completar as missões de várias maneiras. Não era baseado apenas em decisões de diálogo, já que você também tinha as coisas que estavam no mapa e seus diferentes pontos de entrada que permitiam entrar em prédios, bem como elementos que abriam diferentes caminhos na história.”

Deus Ex, dadas as limitações de hardware do ano 2000, conseguiu basicamente tudo o que um videogame poderia aspirar: ação divertida, lore expansivo, comentário social mordaz e liberdade significativa tanto na narrativa quanto na jogabilidade. É arte que é divertida ao mesmo tempo em que é um brinquedo que eleva a arte. Um nunca mina o outro.

E para fechar esta review, uma anedota pessoal da minha longa carreira gamer: em uma missão de GTA V — um blockbuster gigantesco, triplo-A, um dos jogos mais conhecidos da história — o objetivo era simples: subir um arranha-céu semi-construído e eliminar um alvo. Na hora me ocorreu uma dúzia de maneiras divertidas de faze-lo: snipear de um prédio vizinho, sequestrar um avião e ir full 11/9, armar caminhões-bomba para derrubar o prédio... o problema é que se eu fizesse qualquer coisa que o desenvolvedor não tivesse codificado explicitamente — se eu me afastasse muito do ponto de partida ou tentasse qualquer uma das minhas soluções "divertidas" — a missão falhava automaticamente. O jogo educadamente me dizia "Não. Jogue do jeito que EU quero que você jogue".

Agora eu sei que se estivesse jogando Deus Ex, eu poderia fazer do meu jeito.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 156 (Outubro de 2000)


EDIÇÃO 157 (Novembro de 2000)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 078 (Setembro de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 067 (Junho de 2000 - Semana 1)



MATÉRIA NA EGM BRASIL
EDIÇÃO 002 (Maio de 2002)