terça-feira, 16 de dezembro de 2025

[#1622][Mai/1994] TOKIMEKI MEMORIAL

Okay, antes de começarmos, um disclaimer: originalmente, essa deveria ser a review de  Tokimeki Memorial 2 Substories: Dancing Summer Vacation (suponho que o jogo vinha em uma caixa mais alta  só pro titulo caber na lombada). Mas calha que esse jogo é uma visual novel/jogo de ritmo nunca lançado fora do Japão, e eu perderia toda a parte da visual novel. O que eu vou fazer então é aproveitar a chance para conhecer essa franquia famosa nos dating sims pelo único jogo que foi traduzido por fãs, o original de 1994. 


A coisa que eu mais amo nos videogames é essa oportunidade única que ele nos dá de viver outras vidas – de calçar os sapatos de outra pessoa e viver seus dilemas e aventuras por dentro. Não literalmente em primeira pessoa, claro… tá, às vezes é em primeira pessoa. Mas o ponto não é esse, e sim que as vezes os jogos te jogam em cenários incrivelmente fantásticos, como ser um explorador à deriva pela Galáxia de Andrômeda. Outras vezes, eles te arrastam para rotinas pé-no-chão, dolorosamente mundanas – mas rotinas que você nunca viverá na vida real, como trabalhar como oficial de imigração na fronteira de um estado comunista. Eu não me importo se o cenário é plausível ou não. Apenas me faça pensar como outra pessoa por um tempo. Me faça seguir uma linha de pensamento diferente da minha.

E normalmente, jogos são muito bons nisso. Até as premissas mais estranhas tendem a se sustentar, contanto que respeitem alguma lógica interna. Mas então há momentos em que um jogo apresenta um cenário tão completamente alienígena à minha realidade que até a minha normalmente generosa suspensão da descrença me dá um tapinha no ombro e diz: “Opa, calma lá, meu patrão”. Porque há coisas que são simplesmente muito desconectadas do meu entendimento do universo para eu conseguir imergir.

Como um jogo onde ser extremamente popular com as garotas seria apenas o estado padrão da minha existência, mas um problema real. Uma maldição, até. Um jogo onde o interesse romântico não é algo que você alcança com muito esforço, suor e ranger de dentes, mas uma força da natureza que você deve administrar com cuidado, para que não saia do controle e acabe com sua vida. Esse jogo existe, saiba você, e se chama "Memorial das Coisas que Abalam o Coração".

E sim, essa é a tradução mais próxima que dá pra fazer, japonês tem palavras para coisas muito específicas.


Mas vamos começar pelo começo. Vamos supor que você é um estudante comum do colegial chamado – hmm, deixe-me pensar – EsseCaraTotalmenteNãoSouEu. Sim. Esse é o nome dele. EsseCaraTotalmenteNãoSouEu não é exatamente uma pessoa ruim, mas tambem não é uma das boas. Ele vai às aulas, tira notas medianas, ocasionalmente conversa com outro colega masculino sobre alguma coisa da cultura pop – normalmente algo seguro e mainstream – e é basicamente isso. Essa é a vida dele. Essa é toda a sua existencia nesse pálido ponto azul do sistema solar.

Bem… não é exatamente toda. Também tem o bullying rotineiro dos caras descolados, porque aparentemente humilhar alguém é o primeiro passo obrigatório na escada para a popularidade. Mas essa história não é sobre isso, então vamos pular essa parte e seguir em frente. 

Como eu disse, EsseCaraTotalmenteNãoSouEu é um cara comum. Tão comum, com efeito, que se o cabelo dele pegasse fogo espontaneamente no meio da sala de aula, provavelmente levaria um minuto inteiro até alguém notar – se é que alguém notaria.

E claro, como você deve imaginar, EsseCaraTotalmenteNãoSouEu nunca conversou com uma garota. Não porque ele as odeie e nem é porque ele tem medo ou algo assim, mas porque ele está firmemente convencido de que o mero ato de iniciar uma conversa faria com que a garota em questão vomitasse imediatamente por puro e incontrolável nojo. E, novamente, EsseCaraTotalmenteNãoSouEu não é um cara mau. Ele sabe o seu lugar, e esse lugar não é nem no mesmo continente que uma fêmea da espécie.


Naturalmente, EsseCaraTotalmenteNãoSouEu não está feliz com esse arranjo. Mas o que ele pode realmente fazer? As coisas são como são.

Bem… na verdade, há uma coisa que ele pode fazer sim.

Existem jogos onde ele pode viver uma fantasia na qual as garotas não precisam pesar cuidadosamente os prós e contras entre o suicídio e fazer contato visual com ele. Uma fantasia onde ele é simplesmente… normal. Agora, eu sei o que você está pensando – e não, não se trata de sexo ou daquelas tolices ecchi baratas.

Ok. Às vezes é.
Tá. Na maior parte do tempo é.

Mas não é desse tipo de jogo que estou falando aqui. O que estou falando vai além das necessidades basais, dos instintos do cérebro de macaco. É algo mais profundo. É sobre ser visto. É sobre se sentir aceito. Sobre ser tratado como um ser humano, mesmo sem nenhum conteúdo +18 envolvido.

Pensando melhor, acho que os dating sims foram longe demais

E a parte mais estranha é que esse tipo de jogo não apenas existe – como tem um público considerável. Existem milhares, talvez milhões, de EsseCaraTotalmenteNãoSouEu por aí. O número exato é desconhecido, já que eles são basicamente invisíveis e ninguém realmente se importa, o que é basicamente o ponto.

E é aqui que chegamos a um subgênero particular das visual novels: o dating sim.
Que, só para esclarecer um equívoco comum, não é a mesma coisa que uma visual novel em geral. Todo dating sim é uma visual novel, mas nem toda visual novel é um dating sim – Phoenix Wright e Danganronpa sendo os exemplos mais óbvios de visual novels que não são dating sims.

Então, poderíamos agora discutir sobre qual jogo foi o primeiro ou pelo menos tinha mais elementos de dating sim para ser considerado como um, mas isso frequentmente acaba em algum experimento da Sega no qual eles não tinham ideia da galinha dos ovos de ouro que tinham em mãos antes de todo mundo e deixaram a chance passar. Para não envergonhar ainda mais a Sega, vamos pular direto para o jogo que popularizou este novo conceito que atende a esse enorme público de "já aceitei que vou morrer sozinho, só preciso de algo para me ajudar a aguentar até lá", e esse não seria outro senão Tokimeki Memorial, da Konami.

Lançado em 1994, TM foi a primeira vez que uma grande publicadora como a Konami colocou um grande esforço em algo para dizer a esse público específico "ei, amigo, eu te dou uma mão. Quer dizer, não literalmente, eu não chegaria perto de você nem com uma vara de 3 metros, o que é basicamente o ponto, mas ei, aqui está este jogo feito especificamente para você!". Novamente, é um público muito específico, – mas um que é muito maior do que a sociedade geralmente se sente confortável em admitir.


Quando digo que a Konami colocou um esforço real nisso, não estou exagerando. Isso não foi uma curiosidade de baixo orçamento empurrada para as prateleiras das lojas. Tokimeki Memorial foi escrito por ninguém menos que Koji Igarashi, e sua trilha sonora foi composta por Miki Higashino.

O que significa "apenas" o pai de Castlevania e a compositora da série Suikoden. Se a Konami quisesse colocar alguém maior na missão, só se recrutassem o próprio Hideo Kojima. Na verdade, estou bastante surpreso que Kojima tenha feito DUAS visual novels (SNATCHER e POLICENAUTS) e nenhum é um dating sim. Isso teria sido uma coisa para se ver, com certeza.

Agora, a jogabilidade de Tokimeki Memorial é na verdade bem simples. A premissa é a seguinte: você tem uma amiga de infância, o jogo começa no primeiro dia do seu primeiro ano do ensino médio, e você tem até o final da sua vida escolar para transformar essa relação em algo mais do que amizade. Ou, alternativamente, você pode perseguir um relacionamento com qualquer outra garota que encontrar pelo caminho – porque sejamos honestos, se vc está jogando esse jogo, vc não é alguém que está exatamente em posição de escolher, né?

Então, como funciona? A cada domingo ou feriado, você decide como vai gastar seus dias de semana. Você pode estudar, treinar, ler, descansar, participar de atividades de clube, e assim por diante. Essas atividades aumentam os atributos do seu personagem, e se certos atributos atingem limiares específicos, você desencadeará cenas com sua doce escolhida – ou conhecerá novas garotas.


Por exemplo, se você aumentar sua Lógica e/ou Cultura o suficiente (o jogo nunca te mostra os números exatos), você desbloqueará um encontro com Mio, a bibliotecária estudiosa. E é importante entender que toda garota tem seus próprios requisitos de atributo. Sua amiga de infância, naturalmente, é a mais exigente de todas, exigindo pontuações altas em todos os atributos. O amor, ao que parece, é muito seletivo quando se trata de alguém que viu você molhar a cama.

Aos domingos e feriados, você também tem acesso a opções especiais. Você pode ler o jornal para aprender sobre novos date spots, marcar encontros com as garotas – escolha o local certo e dê as respostas certas, e ela gostará mais de você. Escolha o lugar errado, diga a coisa errada, e as coisas se desenrolarão exatamente como na vida real quando você interage com o sexo oposto.

Você também pode ligar para seu amigo Yoshio para obter dicas sobre as garotas, porque Yoshio é um indivíduo profundamente perturbador que de alguma forma mantém um registro detalhado de quanto cada garota gosta de você, quais são suas preferências e o que absolutamente não vai funcionar. O que é realmente impressionante, pq taí um cara que está, de alguma forma, em uma posição social pior do que eu. Eu nunca pensei que isso seria humanamente possível.

Uma última coisa: os domingos são especiais de outra forma. Qualquer atividade que você realizar nesses dias concede mais pontos de atributo do que o normal, o que significa que seus fins de semana são muito valiosos. Escolha sabiamente como gastá-los.


Então, parece tudo muito simples, certo? Mantenha os atributos da sua vida em ordem – estude, malhe, descanse, mantenha uma aparência apresentável. Escolha uma amada e seja fiel a ela. Equilibre sua vida amorosa com sua vida escolar e bang, você venceu. Na verdade esses são conselhos muito bons pra vida real também, agora pensando sobre isso. Enfim, esse é o sonho, certo?

E normalmente, sim. É assim que a maioria dos dating sims funciona.
Mas este não é a "maioria dos dating sims".
Este é Tokimeki Memorial.
Um jogo escrito por Koji Igarashi.
E você sabe quem é Koji Igarashi?

[ELE É O PRODUTOR DE VÁRIOS JOGOS DE CASTLEVANIA, E DAÍ?]

Ele é um homem que absolutamente te odeia. É isso que ele é.
As pessoas jogam CASTLEVANIA: Symphony of the Night e pensam: "Ah, tá, agora eu entendo o que é Castlevania." Não. Você não entende. CASTLEVANIA: Symphony of the Night é uma travestia. Um Castlevania acessível. UM JOGO DE CASTLEVANIA QUE VOCÊ CONSEGUE TERMINAR COM UMA MÍNIMA RAZOABILIDADE.

O horror.
A heresia.

Se você quer a verdadeira experiência Castlevania, tem que jogar Circle of the Moon, Lords of Shadow ou, que o Tinhoso me perdoe, Chronicles. Porque Igarashi pessoalmente seus poderes como produtor para se certificar de que o absurdamente dificil Castlevania original voltasse a luz do luar em 2001. Por quê? Porque ele é um homem que se alimenta do seu sofrimento, e ele não descansará enquanto houver até mesmo uma chama de esperança dentro de sua concha oca.


Então, quando Igarashi foi colocado no comando da escrita de Tokimeki Memorial, ele não hesitou. Ele simplesmente sorriu e disse: "Oh, nossos lover boys querem ser populares com as moças? Muito bem. Nós lhes daremos exatamente isso. Mwahahahahaha." (eu sou legalmente obrigado a declarar que não possuo evidências históricas dessa risada.)

[ELE FEZ UMA PATA DE MACACO COM A COISA TODA, NÃO FEZ?]

Ele fez uma pata de macaco com a coisa toda, Jorge.

É assim que realmente funciona: neste jogo, seus mais selvagens sonhos adolescentes se tornam realidade. O que significa que toda garota que você conhece se torna irreversivelmente, obsessivamente apaixonada por você, seu garanhão absoluto. Você conhece uma garota – bam – ela tá na sua. Claro, vc tem que trabalhar pra ela admitir isso, esse é o desafio, mas a boa vontade já está lá. Sem escapatória.

E esse é o sonho, certo?
…Bem. Não exatamente.

Porque o que o público-alvo deste jogo não percebe muito bem é que há algo pior do que uma mulher ignorando completamente sua existência – algo que nós… quer dizer, eles, conhecem muito bem. E esse algo é uma mulher que se sente preterida pelo objeto de sua afeição.


A partir do momento em que você conhece uma garota, ela tem um medidor de afeição funcionando em segundo plano. E se você deixar esse medidor cair muito, ele se transforma em uma bomba. Literalmente. E quando uma garota atinge o status de bomba, ela começa a fofocar sobre você para as outras garotas. Isso reduz os níveis de afeição de todas. E se mais garotas atingirem o status de bomba, o efeito se torna cascata. Uma bomba vira duas. Duas viram cinco. Antes que você perceba, você desencadeou uma reação em cadeia social total que aniquila toda a sua vida amorosa.

Você aumenta a afeição de uma garota indo a encontros bem-sucedidos, voltando para casa da escola com ela e desencadeando eventos especiais. Você reduz a afeição dela indo a encontros ruins… ou fazendo algo muito pior: ignorando-a. Deixando-a com ciúmes, negligenciada e emocionalmente magoada. 

Então, mais cedo ou mais tarde, você aprende que sua fantasia movida a hormônios de manter um harém de waifus muito rapidamente se transforma em um pesadelo – um no qual você está constantemente desarmando explosivos emocionais, muitas vezes terminando no temido final "Forever Alone". Algumas garotas são especialmente notórias. Yumi é um pesadelo porque ela começa com um nível de afeição alto e tem o temporizador de bomba mais curto do jogo. Megumi é tão ruim quanto, porque ela perde afeição toda vez que você volta para casa com qualquer garota que não seja ela.


Para desarmar uma bomba – ou evitar que uma apareça – você deve ir a um encontro com uma garota pelo menos uma vez a cada quatro meses. Parece razoável, certo? Exceto que isso absolutamente aniquila sua agenda. Leva um domingo ou feriado só para convidar uma garota  (eu te entendo, mano, se eu precisar pegar o telefone e ligar pra alguém meu dia está completamente inutilizado também), e outro domingo ou feriado para realmente ir ao encontro. Com todas as onze garotas em jogo, você precisaria de 22 dias a cada três ou quatro meses apenas para evitar que as bombas se formem. Só que tem apenas cerca de 12 ou 13 domingos no mesmo período. O número de feriados japoneses varia. Faça as contas.

Você provavelmente pode ver como isso rapidamente sai do controle.
POUTA QUE ME PAREIO, IGARASHI.
Eu só queria uma waifu para me ajudar a esquecer que vou morrer triste e sozinho, e agora preciso de uma planilha para otimizar cada único dia da minha vida.
Como você fez um dating sim ser difícil?
E como você faz ele ser TÃO difícil?!

Então, sim, Tokimeki Memorial é um dating sim brutalmente difícil – e eu nunca pensei que escreveria essa frase na minha vida, mas aqui estamos. De alguma forma, é verdade. Não-ironicamente, você realmente precisa de uma planilha para organizar seus encontros em rodízio.

Uma planilha.
Para agendar encontros.
Essas são palavras que nunca imaginei que usaria para descrever qualquer coisa que eu faria, mesmo que no videogame. É assim que a rotina diária de um giga-chad da vida real se parece? Porque se for, achei muito estressante, e a partir de agora ofereço nada senão meu máximo respeito aos meus bros de tanquinho definido.

E essa dificuldade infame é o que realmente tornou o jogo popular no Japão. Não a escrita, que raramente supera os arquétipos de personagens mais básicos. Nem o conteúdo "picante" que inexiste. Até os gráficos, embora perfeitamente respeitáveis para a época, ficam um pouco abaixo da média dos animes contemporaneos anime graças à alta compressão. Ainda está ok, mais do que ok, até.

O bad ending é vc sentado no escuro sozinho, recitando o que o jogo literalmente nomeia como "Poema para o Emasculado"

Mas a coisa que realmente catapultou Tokimeki Memorial acima da superfície foi essa camada extra de jogabilidade – a pura crueldade mecânica de tudo. Afinal, estamos falando do mesmo país que abraçou SUPER MARIO BROS 2 – não o sonho febril americano de arremessar legumes, mas o aterrorizante Lost Levels, como mais tarde viemos a conhece-lo. Um desafio como esse não é um impedimento lá, é praticamente um esporte nacional. Bem… isso, e o poder de marketing da Konami, é claro.

Mas sim – Tokimeki Memorial chamou uma atenção massiva para um gênero que só continuou a florescer desde então, sem mostrar sinais reais de desaceleração. Porque se há um recurso que a humanidade – e o Japão em particular – nunca vai se esgotar, é dos pequeninos (metaforicamente falando, pq fisicamente a realidade costuma ser o contrário) e tristes EsseCaraTotalmenteNãoSouEu.

MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 076 (Agosto de 2000 - Quinzena 2)