quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

[#1611][Mar/1999] SILVER

Eu não posso estressar o suficiente o quão seminal FINAL FANTASY 7 é, não apenas para os RPGs, mas como para a história dos videogames. E eu suponho que a esse ponto eu nem preciso nem tentar, porque sério, se você é do tipo de pessoa que precisa que alguém explique o que FINAL FANTASY 7 significa, então você está lendo o blog errado. Agora que todos estamos na mesma página sobre que FF7 foi todo esse jazz, eu posso seguir com a explicação desse jogo aqui.

Isso pq em 1999 a Infogrames olhou para seu portfólio, coçou seu queixo francês, e disse à pequena equipe britânica da Spiral House: “Sacrebléu, me faz um daqueles Final Fantasy Sevens, oui?”. Os britânicos, sendo britânicos, provavelmente trocaram alguns olhares, terminaram seu peixe com fritas, enxugaram a gordura dos dedos e concordaram. “Aye, guv!” E assim, eles partiram para fazer seu próprio FF7.

E com isso eu quero dizer no sentido mais literal e superficial possível: um jogo com cenários pré-renderizados e o charme poligonal da era PS1. Ok, certo, os gráficos de Silver não são exatamente os braços 3D de Popeye e rostos em forma de toblerone invertido de 1997, mas a inspiração é tão na sua cara que você quase espera que o Cloud entre na tela e pergunte onde fica o reator mais próximo.

Mas eis a questão: embora a semelhança seja inegável, não consigo me livrar da sensação de que a Spiral House olhou para FF7 e não pegou muito bem a idéia da coisa. Eles viram a apresentação, os dioramas pré-renderizados brilhantes, o flare cinemático, e pensaram que era isso que tornava FF7 icônico. Gente… não me entendam mal – era realmente impressionante para 1997, mas em 1999 já era absurdamente datado e não é isso que faz o jogo ser referencia até hoje. E isso foi tudo que eles pegaram de FF7 realmente.

Nossa história aqui se passa na terra conhecida como Jarrah, um reino atualmente estrangulado pelo punho de ferro de um mago tirano chamado Silver. Suponho que ele se tornou maligno depois de ouvir tantas piadinhas de "aiooooooo Silver!" na escola. Eu não o culpo. Seja como for, a aventura começa quando Silver decide que é hora de arranjar uma esposa, e ele instrui seus lacaios a trazerem “toda mulher em idade fértil” do reino para que ele possa escolher uma. Com essas exatas palavras. 

Agora… espera aí. Isso soa errado. Tá, eu sei que é errado – quero dizer, sequestro, casamento forçado, todas as violações de RH usuais dos vilões da Disney – mas isso é  uma outra categoria de errado-errado. Deixa eu só… pesquisar uma coisa rapidinho. A partir de que idade uma mulher é tecnicamente considerada “capaz de procriar”

... hã, então ele quer uma esposa a partir da puberdade?
Meu deus.
Ok, não.
Fecha o jogo.
Alguém chame o FBI medieval, a Interpol dos Reinos de Fantasia, tanto faz – esse mago precisa ser impedido, trancafiado ou lançado num sol. De preferência os três.

Enfim, enquanto nosso vilão que certamente desapontaria o Felca, no continente de Verdante, alheio à futura entrada de Silver na lista dos “Mais Procurados”, nosso protagonista David vive uma existência pacata e pastoral com sua esposa Jennifer e seu avô – criativamente chamado de Vovô. David passa seus dias treinando sob o olhar atento do Vovô, sonhando em se tornar um grande cavaleiro algum dia. É tudo muito wholesome… até que abruptamente não é mais.

Uma manhã, logo quando David e o Vovô estão no meio de um treino animado, um esquadrão das tropas de Silver invade e sequestra Jennifer como uma noiva em potencial para o bruxo malvado. David e o Vovô partem em perseguição, como qualquer protagonista de RPG com amor-próprio faria, mas eles não conseguem alcançá-los antes que os capangas de Silver pulem em um navio e fujam.

A partir deste ponto, cabe a David – e a uma trupe variada de outros personagens que não estão exatamente felizes por terem suas esposas e… filhas recém saídas da pré-adolescência… raptadas por um egomaníaco só porque o nome está na capa do jogo dele – salvar o dia. A missão de David não é apenas uma jornada para se reunir com sua amada; é uma odisseia que revela que os planos de Silver são muito mais sinistros do que um sequestro em massa de noivas. E considerando o ponto de partida, isso é algo realmente preocupante... embora sejamos honestos: qualquer plano maligno que Silver esteja bolando provavelmente não é tão perturbador quanto o que deve ter no histórico do navegador dele.

Como qualquer um pode ver, a trama de Silver começa como aquele enredo genérico  tradicional de salvar-a-princesa. E, infelizmente, ela nunca se dá ao trabalho de ir além dessa premissa de RPG sem inspiração e requentada. A maior parte da “trama” se resume ao seu time esbarrando numa série de obstáculos mundanos – colete as oito pedras elementares, derrote este bandido de segunda linha para conseguir um salvo-conduto, recupere a roupa suja de algum NPC numa caverna, esse tipo de enrolação. É o tipo de conteúdo que você sabe que não vai levar a lugar nenhum, e isso compõe uns 80% do tempo de jogo. Se filler fosse crime, Silver teria pegado prisão perpétua.


Suponho que eu não vou surpreender ninguém ao dizer que desenvolvimento de personagem também é inexistente. Pelo lado positivo, a maioria dos personagens pelo menos tem traços de personalidade primários bem definidos – “cara bravo”, “velho sábio”, “mulher que está aqui porque a trama exige”, etc. Mas só isso. Ninguém muda, ninguém cresce, ninguém aprende nada, e absolutamente ninguém experimenta algo que se aproxime de um arco. São recortes de papelão estáticos te conduzindo de uma masmorra para a outra.

Mas olha, lado bom: pelo menos não precisamos nos preocupar com tradução ruim, já que esta é uma produção totalmente britânica. O que leva a alguns momentos de humor britânico genuinamente inteligente e Silver merece crédito por conseguir fazer comédia sem depender de referências da cultura pop (sim, Working Designs, estou olhando pra vocês. Não pense que esqueci do “Bill Clinton” em LUNAR 2: Eternal Blue).

Uma área onde Silver consegue ter uma identidade distinta é na jogabilidade. O sistema de combate de Silver é surpreendentemente único para sua época: em vez de esmagar botões, você segura o gatilho R para entrar no “modo corpo-a-corpo”, e seus ataques dependem da direção que você pressiona no direcional/analógico enquanto o gatilho pressionado. R + Cima faz estocar, R + Trás para se virar e cortar, etc.  


E para o crédito da Spiral House, funciona… kinda. Certamente não é o pesadelo de DIE BY THE SWORD, mas o sistema de combate de Silver tem um preço – e um bem alto. Como o direcional (ou analógico, se preferir) está ocupado lidando com seus ataques sempre que R está pressionado, você não consegue se mover enquanto luta. Isso significa sem atacar correndo, e toda vez que vc precisa atacar seu boneco estaca no chão como uma viga de concreto. Eu suponho que dá pra imaginar que isso não faz muitos favores ao fluxo de combate. 

E fica menos bom ainda pq seus ataques não são rápidos nem ágeis, então vc precisa considerar onde estacionar seu boneco e se vai dar tempo dele fazer a animação de ataque antes de levar uma piaba. O lag para seus golpes saírem é tão ruim que praticamente desencoraja você de usar qualquer coisa além do golpe de espada padrão – o único ataque que você faz no botão B. Todo o resto nem vale a pena tentar, e como eu disse sobre as mecanicas de BATMAN BEYOND: The Return of the Joker, isso não exatamente grita jogo estelarmente bem pensado. O sistema de mira para magias e armas à distância também não ajuda; selecionar o alvo correto exige muito mais tempo e do que qualquer jogo de ação deveria exigir.

E assim como o combate, os controles de Silver nunca se elevam acima do nível de mediocridade aceitável. Os personagens podem se mover em oito direções, e empurrar o analógico do Dreamcast com mais força os faz andar um pouco mais rápido… em teoria. Na prática, mesmo na “velocidade máxima”, eles arrastam-se pela tela como se estivessem atravessando melaço invisível. Eles também respondem com lentidão às mudanças de direção, e ficar preso em pedaços do cenário é bem comum. Se você sempre quis um jogo onde seu maior inimigo é um barril mal posicionado, parabéns – Silver chegou para você.

A maior parte do restante da jogabilidade segue os elementos tradicionais de action-RPG, e, honestamente, é aí que Silver se sai melhor. Você tem magia, itens e uma variedade de armas que pode usar para bater em inimigos ou ajudar aliados. Você ganha novas habilidades conforme progride, e estas também podem ser usadas em combate. O jogo permite até três personagens em seu grupo ativo: um sob seu controle direto, e dois confiados à IA. O que seria bem legal, não fosse o fato que a IA é imbecil.

As IAs em  SECRET OF MANA  podem ocasionalmente fazer algo estúpido, mas as IAs em Silver se comportam como se estivessem ativamente tentando sabotar sua campanha. Quando você não está controlando, os bonecos do seu grupo correm para o perigo, bloqueiam seus ataques, se afastam durante as lutas – a sensação é que sua party é composta por crianças doidas de açúcar. E falando em Mana, outro aspecto que eles tiraram daquela série e não é um bom: assim como em LEGEND OF MANA, você não pode fugir das batalhas. Uma vez que você engajou com inimigos, é matar ou morrer.

Devo também apontar que Silver não usa um sistema de pontos de experiência. Os personagens sobem de nível depois de certos chefes, eu acho, e honestamente ainda não tenho certeza do que esses level-ups realmente fazem. O dano não melhora perceptivelmente, a defesa continua questionável, e seus companheiros ainda se comportam como se fossem controlados daquele jeito. Se há um sistema mais profundo aqui, ele está tão enterrado que VAGRANT STORY pareceria didático em comparação.


Talvez o melhor recurso da jogabilidade de Silver – e surpreendentemente moderno para sua época – seja como o mundo é fácil de navegar. Em quase qualquer momento fora de batalha, você pode abrir o mapa e viajar instantaneamente para qualquer local descoberto simplesmente posicionando o cursor nele. Em 1999, quick travel era praticamente bruxaria. Isso corta tanto backtracking desnecessário e economiza horas andando por telas que você já explorou. Esse recurso é especialmente crucial porque a maioria dos pontos de save só pode ser usada uma vez, uma escolha de design que  aí sim já era muito datada em 1999. Mas sim, poder teleportar para fora de uma masmorra ou cortar minutos de backtracking chato é uma conveniencia pela qual eu sou muito grato.

O feeling geral de "jogo europeu tentando ser um jRPG" gera uma semelhança perigosamente grande com SHADOW MADNESS, outro jogo que queria desesperadamente imitar FINAL FANTASY 7. Embora Silver nunca atinja o nível de crime de guerra dos problemas daquele jogo – o que, honestamente, nem acho que seja fisicamente possível – a sensação geral é perigosamente familiar. 



Como jogo, Silver é bem-intencionado, mas profundamente falho. Ele nunca faz nada especialmente significativo. A história é insípida, os gráficos são decentes o bastante –mas chegam a ser “memoráveis”. O combate geralmente se degrada num frenesi de botões apertados, piorado ainda mais quando a câmera decide se comportar como se estivesse filmando um documentário sobre o teto. A música, tipicamente a joia da apresentação de um RPG, é… ok. Não é ruim. Não é boa. Não é nada. Ela existe, e essa é a coisa mais gentil que posso dizer sobre ela. E então temos a dublagem. A maior parte é aceitável, mas o protagonista, David, entrega suas falas com todo o engajamento emocional de um homem lendo uma lista de compras. Já ouvi GPS soarem mais vivos. 

Mas esse é meio que o ponto, nada em Silver é verdadeiramente horrível – não há uma única falha catastrófica que condene a experiência. Em vez disso, ele sofre por ser agressivamente e persistentemente esquecível. É o tipo de jogo que você desliga, vai pegar uma bebida, e cinco minutos depois seu cérebro já o apagou. Dependendo da bebida, pode ser mais tipo trinta segundos.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 155 (Setembro de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 074 (Julho de 2000 - Semana 4)