segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

[#1626][Jan/1999] DIGIMON WORLD

Como já expliquei na minha review de POKÉMON RED/BLUE, o final dos anos 90 foi o ápice absoluto da Pokémania. Não que o fenômeno tenha realmente desacelerado — porque hoje, até mesmo um jogo de Pokémon completamente quebrado, rodando a "cinemáticos" 12 FPS, ainda vende mais em um final de semana do que God of War vende em meses. Sim, Pokémon Scarlet e Violet, essa foi para vocês.

Então sim, Pokémon ainda é a franquia de mídia mais lucrativa da história humana, e não há nenhum sinal de que vá pisar no freio. Mas mesmo assim… cara, o final dos anos 90 foi algo completamente diferente. E eu nem preciso explicar isso para você. Você estava lá. Você vive em um mundo onde sua avó não consegue nomear um único videogame moderno, mas ela com certeza sabe o que é um Pikachu. Essa é a escala de que estamos falando. Pokémon não é só grande — é um acontecimento cultural.

E quando algo fica tão grande, todo mundo e a mãe de todo mundo tenta tirar um pedaço desse bolo para si. Algumas tentativas foram inteligentes e autoconscientes, como Medabots. Outras foram… MONSTER RANCHER. Você sabe como isso funciona.

Eis, então, a aliança comercial mais aterrorizante da indústria japonesa de brinquedos e mídia: a gigante conhecida como a dupla Toei–Bandai. Um kaiju corporativo tão massivo e dominante que em praticamente qualquer outro país do planeta eles já estariam com os joelhos afundados em processos por monopólio. Mas isso é o Japão, e o governo não é louco o suficiente para comprar briga com esses caras— caso contrário, no dia seguinte políticos seriam pisoteados até a morte por crianças com máscaras de Kamen Rider e cosplayers de One Piece. Quer dizer, claro, certamente há piores maneiras de morrer do que ser pisoteado por cosplayers da Nami, Nico Robin e Boa Hancock… mas divago.

Onde eu estava?
Ah, sim. A loucura por Pokémon.

Então, obviamente, em algum momento a Toei se virou para seus parceiros de longa data e disse algo do tipo: "Ei. Precisamos de um pedaço dessa coisa de monstros. O que vocês têm?" E a Bandai respondeu: "Uh… Eu tenho esta linha de brinquedos que sobrou da modinha de Tamagotchi, aquele que dá pra batalhar uns contra os outros. Dá para trabalhar com isso?" E claro que a Toei trabalhou com isso. Porque quando você funde duas das maiores manias dos anos 90 — Tamagotchis e monstros que você cria — a horda de crianças inevitavelmente vem logo atrás. E crianças, como todos sabemos, são basicamente pequenos aspiradores de pó sugando as carteiras dos pais.


Então essa é a história, certo? Uma planilha sem alma nascida de pesquisas de mercado em duas corporações gigantes que marca todas as caixinhas do que venderia zilhões de brinquedos — e então isso acontece. Caso encerrado. Digimon é só a tentativa nº 238 de surfar na onda de Pokémon, só que dessa vez apoiada por megacorporações do tamanho de Megacorps cyberpunk, certo?

Bem… tecnicamente sim.
Mas não é tão simples.

Mas para entender o que é Digimon de verdade, deixe-me levá-lo a outro exemplo. Você pode ou não  estar ciente de um desenho do Cartoon Network chamado "As Trapalhadas de Flapjack". A maioria das pessoas não está. É um desenho amplamente esquecido, meio lembrado na melhor das hipóteses. E ainda assim, paradoxalmente, é uma das séries de animação ocidental mais importantes já feitas em todos os tempos. Por quê? Porque a equipe por trás dele não era um grupo cuidadosamente montado de veteranos da indústria — era um bando de novatos recém-saídos da faculdade de arte, contratados pelo Cartoon Network pelo preço de um chiclete tutti-frutti e um "toca aqui".


Anos depois, ficou ridiculamente claro que essa equipe emjambrada era nada menos que um dream team da animação ocidental. Estamos falando de Pendleton Ward, o criador de Hora da Aventura. J.G. Quintel, a mente por trás de "Apenas um Show". Alex Hirsch, que viria a criar Gravity Falls. Patrick McHale, o responsável por Over the Garden Wall. Este foi um supergrupo incrivelmente bem recrutado, sim, mas também foi bastante sorte, combinada com orçamentos baixos, supervisão solta e um estúdio disposto a deixar ideias estranhas respirar. E essa combinação desencadeou uma reação em cadeia que ainda molda a cultura pop hoje.

Eu quero dizer literalmente até hoje, pq Rebecca Sugar trabalhou com Pendleton Ward antes de criar Steven Universe. Dana Terrace trabalhou com Alex Hirsch em Gravity Falls antes de nos dar o maravilhoso The Owl House. E a lista continua. Um pequeno desenho de 2008, quase descartável, acabou redefinindo uma geração inteira de animação.

Mas... por que estou contando tudo isso?
Bem, porque Digimon Adventure é basicamente o equivalente japonês desse fenômeno.

A Toei não se sentou e disse: "Vamos montar uma equipe de novatos que redefinirá a animação por décadas". O que eles fizeram foi muito mais mundano: reuniram um bando de estagiários mal pagos, misturaram com alguns veteranos que eles tinham encostados de bobeira, e disseram a eles para fazerem algo que vendesse brinquedos. Esse era o briefing. Nada mais.

E ainda assim, décadas depois, olhando para o time de Digimon Adventure, você pode ver claramente o quão especial aquela equipe realmente era — e quantos daquelas mentes criativas iriam moldar o anime, a televisão infantil e a narrativa do gênero de maneiras que nenhuma planilha de pesquisa de mercado poderia prever. Às vezes, as obras mais importantes não nascem da visão.

Por exemplo, o roteirista principal de Digimon Adventure não era outro senão Satoru Nishizono. Embora seu nome não seja tão louvado quanto deveria, seu currículo absolutamente merece. Seu trabalho mais conhecido (ou pelo menos deveria ser) é "Welcome to the NHK" — um dos animes mais dolorosamente honestos e profundamente empáticos já escritos sobre solidão, depressão, isolamento social e o horror silencioso de existir quando você sente que a sociedade já desistiu de você.

E se isso não fosse o suficiente, Nishizono também foi o homem que olhou para Naruto — uma bagunça gigantesca e cada vez mais incoerente de linhas narrativas e mudanças de tom brutais — e de alguma forma reorganizou aquele caos no que se tornaria um dos animes shōnen mais influentes de todos os tempos. Em outras palavras, ele coordenou a transição de Naruto para Naruto Shippuden. Isso por si só é o tipo de conquista de carreira que deveria garantir a alguém uma cadeira permanente no hall da fama da história do anime.


- Ikakumon, pega leve com ele!
- Deixa comigo, chefe! [DISPARA UM MÍSSIL NO CARA]

Depois, um dos diretores de episódio recorrentes de Digimon Adventure era Mamoru Hosoda. Naquela época, ele era pouco mais que um estagiário, sobrevivendo de lámen frio e horas extras não pagas. Hoje, ele é um dos diretores mais aclamados da animação japonesa, responsável por clássicos modernos como The Girl Who Leap Through Time, Summer Wars e Wolf Children e até uma indicação ao Oscar por Mirai.

Pense nisso por um segundo.
Um diretor indicado ao Oscar perdeu sua virgindade dirigindo Digimon.
Agora você está começando a entender onde eu quero chegar?

E então temos a música.
Imagine um cantor lá pelos vinte e poucos anos, sem grandes sucessos, sem grande reputação e sem nenhum poder de barganha. Ele foi contratado justamente porque era barato. Apenas mais uma voz anônima — um Zé Ninguém com um microfone — chamado Wada Kōji.

Hoje, não existe um único otaku neste mundo ou em qualquer outro que não saiba quem foi Wada Kōji.

O homem cuja voz mais tarde se tornaria inseparável da identidade emocional de Digimon. O homem cujas canções marcariam permanentemente os dutos lacrimais de uma geração inteira. Vou me aprofundar mais na música depois — assumindo que eu consiga fazer isso sem estragar meu teclado por causa das lágrimas. 


Porém nem apenas de novatos é feito Digimon, temos também a "velha guarda". Os veteranos antigos da Toei — as pessoas que estavam lá não porque a empresa confiava neles com algo importante, mas porque a cultura corporativa japonesa torna demitir funcionários de longo prazo prestigiosos um ato quase impensável. A Toei não queria desperdiçar suas "jóias reais" no que parecia um projeto mercadológico descartável, então esses funcionários seniores que estavam ocupando  espaço foram discretamente realocados para Digimon.

O que faria sentido…
Se eles não fossem absolutamente lendas.

Veja Takanori Arisawa, o compositor principal da série — já famoso por trabalhos icônicos como a trilha sonora de Sailor Moon. Ou Hiroyuki Kakudō, outro diretor da série, que já havia trabalhado em clássicos como Slam Dunk e mais tarde ajudou a moldar Yu-Gi-Oh! em um fenômeno global (mesmo que, honestamente, a maior parte desse sucesso se deva ao jogo de cartas, e não aos méritos artísticos do anime — mas isso é uma discussão para outro dia).

Então não, isso não foi apenas um anime qualquer de comercial de brinquedo colocado às pressas por executivos sem alma. Esta foi uma convergência bizarra de novatos mal pagos, gênios futuros, artistas subestimados e lendas veteranas — todos jogados na mesma panela de pressão por acidente. E o resultado foi uma série que acabou sendo muito mais sincera, emocionalmente complexa e artisticamente ressonante do que jamais teve o direito de ser.

Meu ponto é simples:
Essa equipe não era apenas boa.
Ela era discretamente extraordinária.

Mas agora que entendemos quem fez Digimon, vamos ver o que eles realmente fizeram, certo? Porque assistir a Digimon Adventure em 2025 — agora como um adulto que sabe pelo menos um pouco sobre escrita, tempo de tela e estrutura narrativa básica — a primeira coisa que me saltou aos olhos foi uma pergunta simples: "Como diabos esse anime pode sequer funcionar?"

Sério. Como?

O elenco principal sozinho consiste em catorze personagens. Catorze. Sete crianças e sete Digimon — que não são apenas mascotes, nem animais silenciosos, mas personagens totalmente formados com personalidades, diálogos, arcos emocionais e agência própria. E isso é apenas os protagonistas. Além disso, você tem antagonistas, vilões recorrentes, personagens convidados e todas as outras peças móveis que compõem uma série de TV de longa duração. Catorze personagens principais. Que viram DEZESSEIS depois, porque é claro que viram.

Você tem ideia de como é difícil fazer com que isso não vire uma bagunça do caralho? De como isso poderia facilmente desmoronar em um programa onde um protagonista rouba todo o holofote enquanto todos os outros viram objetos cenográficos?

Para comparação: POWER RANGERS: Lightspeed Rescue lutou para equilibrar adequadamente um elenco rotativo de cinco ou seis Rangers recorrentes — e se perdeu completamente na distribuição de tempo de tela. Eles não tankaram 5 ou 6, imagine 14 ou 16! Então aqui vai um conselho gratuito de escrita, garotada: Nunca. Nunca, jamais, faça um programa com catorze personagens principais. Nem mesmo se sua vida depender disso.

E ainda assim… isso é exatamente o que Digimon Adventure faz.

E de alguma forma — contra toda a lógica, contra todas as melhores práticas de roteiro, contra as leis da física narrativa — funciona. Inacreditavelmente, funciona. Isso é algo que eu simplesmente não tinha bagagem narrativa para entender quando criança, mas revisitando agora, a maestria da coisa se torna impossível de ignorar. Há mais personagens nesse grupo do que ovos em uma dúzia, e de alguma forma não é uma bagunça.

"Depois que inventaram o trezoitão, digievolução virou dança"

O tempo de tela é dividido de uma forma quase exemplar. E não é só que todo mundo "tem falas". Você entende quem eles são. Você consegue nomeá-los. Você se lembra deles. Mais importante, você se importa com suas personalidades, seus conflitos e seus temas individuais — e sim, chegaremos neles em um momento.

Por todas as regras estabelecidas da escrita, isso deveria ter falhado espetacularmente. E ainda assim não falhou. Ainda não tenho certeza de como explicar isso de outra forma — a não ser dizer que foi simplesmente bem escrito pra caralho. Tá, eu sei, o elenco de Digimon não é exatamente literatura russa. Esses personagens não são protagonistas de Dostoiévski lutando contra angústia existencial. Cada um é construído em torno de uma característica de personalidade clara e uma motivação básica — nada mais do que isso. Mas funciona para o que o show está tentando fazer.

Os próprios Digimon têm personalidade suficiente para você se importar com eles, e para um desenho infantil, isso já é mais do que suficiente. O que, novamente, pode parecer simples — mas você se surpreenderia com quantas obras falham mesmo nesse requisito básico e nunca conseguem fazer o público investir emocionalmente em seus personagens.

Mas o que realmente se destaca são as crianças.

PunkAgumon e ReggaePalmon, cinema absoluto

O elenco humano é surpreendentemente pé no chão — especialmente para esse tipo de show. E o mais impressionante é como as crianças se comportam como… bem, crianças. Isso pode parecer óbvio, mas na verdade é raro em animações voltadas para o público mais jovem. A maioria dos desenhos ou escreve as crianças como miniadultos hipercompetentes ou as reduz a bordões ambulantes. Digimon não faz nem um, nem outro.

Não estou dizendo que isso é um anime profundamente filosófico. Ainda é sobre crianças indo em uma aventura com seus amigos monstros — basicamente o mesmo pitch de todo clone de Pokémon da época. Mas Digimon Adventure salpica momentos aqui e ali que provam que tinha alguém pensando no que estava fazendo.

Quando a aventura do dia termina e eles se sentam quietos em volta de uma fogueira, eles sentem saudades de casa. Não porque o roteiro nos diz que eles deveriam — mas porque eles são apenas crianças. Sim, crianças tendo aventuras fantásticas com amigos… mas também crianças dormindo no chão, comendo o que conseguem catar, e lutando contra monstros literais que ativamente querem matá-los.

Eles sentem falta das camas.
Eles sentem falta de refeições quentes.
Eles sentem falta de suas mães.
Porque no fim do dia, eles são crianças carregando muito mais peso do que qualquer um de sua idade jamais deveria.

O show gasta um tempo significativo na pura logística da sobrevivência. Comida é um problema. Frio é um problema. Andar por horas todos os dias é um problema. E o show nunca deixa você esquecer o porquê: eles são apenas crianças. Claro, eles tentam permanecer otimistas. O tom nunca se torna pesado. Mas naqueles pequenos momentos de quietude, os personagens parecem inegavelmente humanos. Não estou exagerando quando digo que, às vezes, Digimon Adventure parece uma versão family friendy e classificada para todas as idades de "O Senhor das Moscas". Despojada de sua selvageria, mas não de sua honestidade emocional. E isso sozinho é o suficiente para torná-lo um dos melhores isekai que já assisti — não que a barra desse subgenero seja muito alta, mas divago.

Também ajuda — e muito — que você possa perceber claramente que essas lutas e dilemas internos foram escritos por adultos.
Bem, dã. Temos um Xerox Rolmes aqui.

Mas o que quero dizer com isso é que eles foram escritos por adultos que realmente entendem o básico de psicologia infantil, e que escolheram explorar temas que genuinamente importam nessa idade. O que, felizmente, significa que não há romances melodramáticos forçados ou triângulos amorosos exagerados que até mesmo animes excelentes às vezes insistem em forçar em histórias sobre crianças. Sim, Anohana, esta foi pra você.

Esses personagens não guardam rancores profundos e operísticos, e não são apenas adultos genéricos desenhados com corpos menores. Eles são crianças com problemas que crianças realmente enfrentam. T.K. e Matt têm que lidar com pais divorciados. Izzy luta com o conhecimento de que é adotado, sem saber como ele "deveria" agir com sua mãe adotiva, e silenciosamente aterrorizado de dizer a coisa errada. Joe — sendo um pouco mais velho que o resto — sucumbe à intensa pressão familiar para seguir um caminho de carreira muito específico, um tipo de expectativa especialmente comum no Japão e muito mais sufocante do que costuma ser em outros lugares. Esses não são conflitos abstratos. São ansiedades íntimas, domésticas, profundamente reconhecíveis.

Pegue Sora, por exemplo. Em seu momento de maior catarse, ela explode com sua Digimon por correr riscos desnecessários — riscos que poderiam tê-la feito se machucar ou até morrer. A Piyomon fica confusa e magoada, não entende por que Sora está tão brava quando ela estava "apenas tentando ajudar". E no meio dessa confusão que Sora se liga de uma coisa: ela está fazendo exatamente a mesma coisa que sua mãe — a quem ela criticou e ressentiu por tanto tempo — sempre fez com ela.

A mãe de Sora é autoritária e intransigente, não porque ela não se importa, mas porque ela se importa demais. Ela simplesmente cresceu em um ambiente que nunca a ensinou a expressar preocupação de uma forma saudável. E Sora percebe, chocada, que herdou a mesma falha. Quando sua mãe a repreende por se machucar jogando futebol, ou por não se comportar como uma garota "adequada", nunca foi sobre rejeição — era sobre proteção, filtrada pelas únicas ferramentas emocionais que sua mãe tinha. Esse nível de autoconsciência é incrível para um show onde você normalmente não esperaria nada além de monstros socando uns aos outros.

Com exceção da Mimi — que é, reconhecidamente, a membro menos desenvolvida do elenco — todas as outras crianças são surpreendentemente bem realizadas. Elas cometem exatamente os tipos de erros que você esperaria de crianças encarregadas de salvar o mundo: sendo impulsivas, explodindo com os amigos, sentindo-se esmagadas pela responsabilidade, congelando sob pressão, ou apenas ficando exaustas e querendo ir para casa. E novamente, este não é um nível de escrita que você esperaria de um anime infantil voltado para vender brinquedos.


Você pode sentir claramente que os roteiristas estavam se inspirando em experiências vividas — seja lembrando como era ser criança, ou refletindo, como pais, no que eles podem estar colocando seus próprios filhos para passar. Essa perspectiva dá a Digimon Adventure uma autenticidade emocional que a eleva muito acima de seus contemporâneos, e muito além do que sua premissa jamais prometeu.

Deixe-me dar outro exemplo — meu episódio favorito de todo o show. E, honestamente, o episódio favorito de todo mundo. O Episódio 21 nada mais é do que Mamoru Hosoda ostentando seu talento por vinte minutos seguidos, lembrando ao universo que ele é, de fato, um diretor absurdamente foda. Aquele episódio sozinho é basicamente um curta-metragem. O estilo de animação muda, os ângulos de câmera se tornam ousados, o timing é impecável, a edição é afiada. São vinte minutos de um futuro diretor indicado ao Oscar completamente solto em um desenho infantil que não tinha absolutamente nenhum direito de ser tão bom.

Mas aqui está a parte importante: neste episódio, Tai e seu Digimon são separados do grupo e de alguma forma jogados de volta para o Japão — de volta ao mundo real. Enquanto tenta entender o que diabos acabou de acontecer, Tai lentamente chega a uma realização: mais cedo ou mais tarde, ele terá que voltar para o Mundo Digital. Ele não pode simplesmente abandonar seus amigos. Ele não pode fingir que nada disso aconteceu e voltar para sua vida normal.

Ele sabe disso.
E ainda assim… ele não quer.

Em uma das cenas mais bem escritas que já vi em qualquer anime — e digo isso como alguém que assistiu a uma quantidade ridícula de anime — Tai diz ao Koromon que ele não precisa voltar. Koromon pode ficar aqui, em Tóquio. Aqui, ninguém vai tentar matá-lo. Ele nunca mais terá que lutar. Ele sempre terá comida. Ele sempre terá uma cama. E embora a mãe do Tai possa ser assustadora às vezes, ela ainda é uma mãe de verdade. Ela o protegerá. Ela cuidará das coisas difíceis. Ela resolverá os problemas para que ele não precise.

Só que tem uma coisa: Tai não está realmente falando com Koromon.
Ele está falando pra ele mesmo.
E o show nunca deixa isso explícito. Não sublinha. Não enfia na sua cara. Você sabe por causa de como a cena é montada. Tai se vira para a parede para que sua irmãzinha não o veja chorando enquanto ele diz isso. Essa única escolha — pura direção, pura escrita — diz tudo.

Isso não é sobre monstros.
Isso não é sobre dever.
Isso é sobre uma criança que está cansada, assustada, sobrecarregada e desesperadamente quer que alguém — qualquer um — diga a ele que está tudo bem parar.

Aquela cena captura algo dolorosamente universal: o momento em que a responsabilidade se torna muito pesada, e a fantasia não é heroísmo — é segurança. É ir para casa. É deixar outra pessoa cuidar das coisas. Isso, como o meme diz tão perfeitamente, é cinema absoluto. E o fato de isso acontecer em Digimon Adventure — um show que a maioria das pessoas ainda descarta como "apenas um clone de Pokémon" — não é nada menos que milagroso.


Agora, normalmente eu gosto de cobrir todos os aspectos positivos de uma obra antes de mergulhar nos problemas — ou fazer o contrário, dependendo do caso. Mas desta vez, vou fazer um pouco diferente. Vou falar sobre os problemas primeiro, antes de voltar à música. E você entenderá o porquê. Ou você já sabe se assistiu ao anime.

Porque, como você pode imaginar, Digimon Adventure não é um anime perfeito. Longe disso. Este é um desenho infantil, e no fim do dia seu objetivo principal é vender brinquedos. E isso, por si só, não é um problema. É assim que a indústria de entretenimento infantil japonesa funciona. A Toei e Bandai não ficam lançando novas séries de Kamen Rider todo ano por um amor incondicional por histórias de motoqueiros mascarados — é sobre empurrar plástico pras crianças.

E novamente: tudo bem. Sério.

O problema é que Digimon torna muito difícil ignorar isso. Isso não é sobre um ocasional product placement. Estou falando de trechos inteiros de três minutos onde o episódio para completamente para podermos assistir ps Digimon digievoluir — de novo. E de novo. E de novo. A sequência repete o nome do Digimon, depois o nome da evolução, e muito convenientemente mostra o aparelho que você deveria implorar para seus pais comprarem. Porque sim, o Digivice é essencialmente o Tamagotchi de batalha que começou a franquia inteira em primeiro lugar.


Se você cortar a abertura e o encerramento, aproximadamente um sexto de cada episódio é puro comercial de brinquedo. Às vezes ainda mais. E claro que piora conforme a série avança, porque introduzem novas evoluções. E naturalmente, eles não pulam pra forma Perfeita de uma vez. Primeiro você pega a evolução para a forma Adulta. Depois, na sequencia, a evolução "super". Então você tem que sentar e assistir a ambas. Todas as vezes. Por 54 episódios seguidos.

Olha, as sequências de evolução são legais. Realmente são. Brave Heart é o hino dos hinos. Mas no episódio 38 eu me peguei murmurando durante o sono: "Piyomon shinkaaaa… Birdramon…" E isso é só um deles. Oito Digimon. Duas formas cada. Três formas para Agumon e Gabumon, porque é claro que eles são especiais. Multiplique isso por dezenas de episódios e você começa a se sentir preso em uma espécie de purgatório evolutivo colorido.

Ok, pessoal. Isso é um pouco demais, não acham? Poxa...


Meu outro grande problema com o show são os vilões. Você sabe de todas aquelas coisas que acabei de escrever sobre as crianças? Sobre caracterização realista, escrita cuidadosa, inteligência emocional e nuance psicológica? Pois é — pode riscar tudo isso.

Os vilões são maus.
Eles são feitos de trevas.
Eles odeiam tudo que é bom.
Fim.

Agora, não estou dizendo que eles não funcionam. Eles absolutamente funcionam. Eles são caras maus fazendo coisas de caras maus — às vezes coisas realmente ruins. Vamdemon (ou Miyotismon como foi traduzido no ocidente, sei lá eu pq) e os Mestres das Trevas, em particular, tem uma contagem de corpos surpreendentemente alta para um desenho infantil. Como ameaças, eles funcionam. Como obstáculos, são eficazes. Mas é só… isso.

Não tankei descobrir que o dublador do Vamdemon é o mesmo do Crocodile, dona mãe do Luffy tá muito passadinha

Cada vilão não ganha nem uma desculpa de guardanapo para explicar por que existe, e então seguimos em frente. As crianças e os digimons se arrebentam pra derrotar um chefe, e cerca de três segundos depois o próximo chega para bater o cartão do seu turno. Sem preparação. Sem prenúncio. Sem construção de mundo significativa. Só "parabéns, aqui está seu próximo soberano maligno".

E olha — Digimon não vive ou morre por seus vilões. Isso não é um fator decisivo. Mas é exatamente por isso que é frustrante. O show coloca tanto cuidado em seus heróis que parece estranhamente preguiçoso tratar os antagonistas como recortes de papelão descartáveis. Quando o vilão final, Apocalymon, aparece, ele faz um longo e dramático monólogo maligno que meio que funciona — pelos padrões de desenho de sábado de manhã. Filosoficamente, até faz uma certa quantidade de sentido. Mas eu não consegui me envolver totalmente, porque tudo que conseguia pensar era:

"Espera. O anime termina em dois episódios.
De onde esse cara veio?
E por que nunca sequer houve uma única menção sobre sua existência até agora?"

Claro, há uma explicação expositiva. Muito telling. Pouco showing. E esse é o problema. Digimon me ensinou a esperar mais do que uma lore de vilão do tipo "só confia em mim, cara". Você já provou que sabe construir arcos emocionais e preparações temáticas. Você consegue fazer isso. O que torna a falta de esforço aqui ainda mais decepcionante. No fim, os vilões são exatamente o que você esperaria de "clone de Pokémon #238". E isso é uma decepção — especialmente porque o show em si é muitas vezes muito melhor do que essa etiqueta sugere.

Ah — e já que estamos falando de problemas…
Podemos falar sobre a Mimi?

Ok, eu entendo. Ela é fofa. Ela é adorável. Ela é... uma criança de dez anos de idade. No máximo 11. E o show continua repetindo essa "piada" recorrente onde basicamente tudo que respira — digitalmente ou não — quer beijar sua boquinha fofa. Eu entendo que esse tipo de piada era deprimentemente comum nos animes dos anos 90. Mas mesmo assim... Sério? Será que seria pedir demais a todos os seres vivos no Mundo Digital para não tentarem conectar seus pendrives em uma porta USB de uma literal criança por apenas cinco minutos?

É.
Isso não envelheceu bem.
Tipo… nem um pouco.

MINHA SENHORA, ESSE MENINO TEM DEZ ANOS DE IDADE, MINHA SENHORA

Bem — estamos perto do fim agora do que essencialmente se tornou um pequeno livro sobre Digimon. Então vamos fechar isso corretamente, com o elemento que realmente faz esta série ocupar um lugar tão especial no meu coração: a música.

Porque aqui está a coisa. Mesmo se a caracterização for mais profunda do que você jamais esperaria desse tipo de anime, os temas narrativos centrais em si realmente não são. Em seu cerne, Digimon Adventure está trabalhando com material shōnen muito padrão: coragem, acreditar em seus amigos, derrotar o mal, justiça — seja lá o que isso signifique, porque nunca vi um único programa infantil japonês realmente se dar ao trabalho de defini-la.

Em seu valor básico, esses temas são explicitamente voltados para crianças. E para qualquer outra pessoa, eles podem parecer bregas. Clichês. Cafonas. Porque, francamente… eles são. E é aí que entra a trilha sonora. Porque Takanori Arisawa e Kōji Wada não tentam "consertar" essa cafonice. Eles não tentam modernizá-la, subvertê-la ou escondê-la atrás de ironia. Em vez disso, eles abraçam completamente. Eles fazem um full Agent Coulson e dizem:

"Sim, isso pode soar um pouco antiquado. Mas sabe de uma coisa? Com tudo que está acontecendo — e com tudo que vai acontecer — acho que as pessoas precisam de um pouco de antiquado."

E de alguma forma, ao abraçar essa sinceridade em vez de fugir dela, a música transforma o que poderia ter sido vergonha alheia em algo sincero. Honesto. Genuíno. Pegue "Shōri ~Zen no Theme~", por exemplo — o tema recorrente de luz e esperança ao longo da série. É tão caloroso, tão sincero, que em vez de revirar os olhos para sua mensagem de acreditar no bem, você genuinamente a sente. Não ironicamente. Não como uma piada. Mas bem fundo no seu peito.


Ela carrega uma verdade simples, mas infinitamente poderosa: não há escuridão tão profunda que não se desmanche luz de uma única vela. Que não importa o quão sem esperança as coisas pareçam — não importa o quanto o mundo ao seu redor pareça estar desmoronando — a esperança permanece pura. Maior que tudo isso. E não há nada que essa luz não possa realizar.

O mesmo vale para "Saikai", o tema de Aventura Leve. Você pode praticamente sentir a suave luz de sábado de manhã no seu rosto. O ar fresco de um novo mundo corajoso cheio de maravilhas, perigos e possibilidades. Ele te convida para esse mundo.

E então, quando Digimon realmente quer ostentar, ele simplesmente solta casualmente um Boléro de Ravel. Esse é o tema do Mundo Real. Então agora você está assistindo Digimons lutando em locais reais de Tóquio enquanto uma das composições mais elegantes já escritas toca em segundo plano. Sem efeitos sonoros. Sem gritos. Apenas classe pura. Um papagaio gigante lançando uma bola de fogo no Estádio Nacional de Tóquio. Um Tiranossauro caindo em cima do iconico prédio da Fuji TV em Odaiba — ao som de Boléro.

Quando o diretor pediu uma trilha sofisticada para o fundo, Arisawa provavelmente só estalou o pescoço e disse: "É. Tenho algo em mente." Caceta maluco, que outro anime pode ostentar esse grau de sofisticação em trilha sonora?

E isso é tudo apenas a música de fundo. Quando se trata das músicas com letras, é aí que Kōji Wada realmente assume o centro do palco — e você pode sentir, imediatamente, que ele está derramando sua alma em cada nota. Ele não apenas canta essas músicas. Ele acredita nelas. Cada palavra que ele ecoa soa como algo em que ele está apostando seu coração pessoalmente. Pegue "Butter-Fly", a icônica música de abertura:

"Preso em um mundo estéril, após o fim de um sonho sem fim
É isso, até mesmo esses sentimentos cativantes parecem vacilar…
Mas—
Mesmo com essas asas frágeis e quebradas, feitas de imagens que ainda permanecem
Eu posso voar para longe
No meu amor.
"

Esta não é uma música triunfante. É uma música sobre perda. Sobre ficar de pé no rescaldo de sonhos despedaçados, quando tudo que um dia importou parece distante e frágil. E ainda assim, ela insiste que mesmo asas quebradas ainda podem voar. A mensagem é simples, mas poderosa: você não precisa ser perfeito. Você não precisa estar inteiro. Você nem precisa ser forte. Se uma única borboleta pode permanecer no ar apenas deixando o vento carregá-la, então talvez tudo que você realmente precise seja segurar o que é bom e se recusar a soltar.

Sim — isso é cafona. É motivacional. É borderline material de discurso de coach. Mas Wada canta com uma sinceridade tão absoluta que você não se sente falado "para você". Você se sente falado "com você". Você sente como se ele não apenas acreditasse nas palavras — ele acredita em você. E isso faz toda a diferença.

E isso não foi um milagre único.

A parceria entre Takanori Arisawa e Kōji Wada continuou através de várias instalações de Digimon, dando à franquia sua verdadeira alma: uma crença sincera e sem remorsos na bondade, na perseverança, na luz triunfando sobre a escuridão.

Até não continuar mais.

Arisawa trabalhou com a Toei até Digimon Frontier, a quarta entrada. Ele faleceu em 2005, muito jovem, com apenas 54 anos. E você pode sentir imediatamente sua ausência na série seguinte, Digimon Savers. Algo insubstituível foi perdido — algo que nenhuma quantidade de competência técnica poderia jamais replicar.

Wada ficou com a franquia um pouco mais, trabalhando até Digimon tri. em 2015 — já então anos imerso em uma batalha brutal contra o câncer. Saber disso torna suas contribuições finais ainda mais poderosas. Elas parecem uma despedida. Como as últimas palavras de alguém que passou a vida nos ensinando a acreditar em nossos sonhos, a nunca esquecer que a luz é infinita — e acolhedora.


Hoje, o mundo parece um pouco mais frio e um pouco mais escuro sem os dois.
Mas não realmente.

Porque enquanto carregarmos a mensagem deles em nossos corações — que sempre podemos ser melhores, que podemos fazer milagres enquanto houver uma fagulha de luz em nós, por menos que seja — a luz deles ainda está aqui.

Obrigado, Arisawa-sensei.
Obrigado, Wada-sensei.

O que vocês nos ensinaram ecoará pela eternidade.


… Tá.
Eu preciso respirar um minutinho.

Isso foi muita coisa. Mas ainda não terminamos — porque agora finalmente chegamos ao que motivou este post inteiro em primeiro lugar: o jogo licenciado tie-in. E tenho que dizer, Digimon World é um jogo verdadeiramente... único... sob vários ângulos diferentes.

Porque quando você imagina um "jogo de Digimon" no PlayStation 1, o que você espera? Provavelmente um RPG. Talvez um jogo de plataforma 3D. Ou um jogo de corrida de kart — porque estamos no início dos anos 2000 e todo mundo ganha um jogo de corrida de kart. Eu nem ficaria surpreso se existisse um estrelado pela sua mãe, embora nesse caso o kart teria que ter um motor de jato. 

Perdão. Passei dos limites aqui.
Onde eu estava? Ah, certo — o jogo de Digimon.

Então, vamos deixar isso bem claro: Digimon World não é nada do que você esperaria. E mais importante, ele não é realmente baseado no anime. Em vez disso, ele retira seu DNA da linha de Tamagotchis originais da franquia. O que significa que Digimon World é, antes de tudo, um simulador de criação.


Você não joga este jogo como um RPG tradicional. Você desenvolve o seu monstro. Você alimenta seu Digimon. Você o treina. Você leva ele pra fazer cocô (sim, isso é uma mecânica). Você o repreende quando ele se comporta mal. Você o põe para dormir. Você o vê evoluir, envelhecer e eventualmente… morrer. Só depois de tudo isso o jogo lentamente se revela como uma aventura baseada em exploração. Em outras palavras, Digimon World trata o Digimon como um Tamagotchi em primeiro lugar, e como um protagonista de videogame em segundo.

E só isso já o torna uma escolha de design bizarra e arriscada — especialmente para um título licenciado de PS1 voltado para crianças que provavelmente só queriam soltar bolas de fogo e gritar nomes de evolução para a TV. Mas vamos com calma e dar uma olhada mais de perto em como essa coisa realmente funciona. Então, você é uma criança que é digi-transportada para o Mundo Digital, e seu trabalho lá é exatamente o que qualquer criança normal faria nessa situação: criar um animal de estimação virtual para que ele possa sentar a porrada em todo mundo. Parece justo.

Você começa com Agumon ou Gabumon, dependendo de como responde o questionário da introdução, e a partir daí sua vida imediatamente vira gerenciamento de academia. Você treina atributos na tela ao lado: HP, MP, Força, Velocidade, Defesa — nada sofisticado, nada desconhecido para quem já tocou em um RPG. Mas, é claro, o jogo não é só treino e é que o DNA do Tamagotchi entra com força total.

Seu Digimon fica cansado e ele precisa dormir (que são duas necessidades diferentes nesse jogo).
Ele fica com fome e precisa ser alimentado.
E — mais importante — ele precisa fazer cocô. E sim, você tem que levá-lo ao banheiro senão ele caga no chão e foda-se.


Este é o loop central do jogo. Você está constantemente tentando encaixar sessões de treino entre as necessidades biológicas básicas do seu Digimon. Force demais e ele fica exausto. Negligencie-o e ele fica doente. Trate-o mal e o jogo absolutamente vai julgar você por isso.

Se você administrar esse malabarismo corretamente, seu Digimon eventualmente evolui para seu próximo estágio. E aqui está a parte legal: o jogo nunca te diz no que ele vai se tornar. A evolução é determinada pelos seus atributos no momento da evolução, mais um punhado de requisitos ocultos. Seu Agumon pode virar Greymon, como no anime… ou Tyrannomon… ou Monochromon, entre várias outras possibilidades.

Hoje, claro, isso não é segredo se vc não quiser — este é um jogo de 25 anos atrás. O código foi completamente decifrado, e você pode encontrar tabelas de evolução exatas online. Mas em 2000? Não saber era parte da mágica. Cada evolução parecia abrir uma caixa de loot, exceto que a caixa de loot julgava suas habilidades parentais.

Porque se você estragar tudo, seu Digimon evolui para Numemon.
Sim. Aquele Numemon.
O Digimon obcecado por cocô do anime (e por passar sua jiromba Digital na Mimi, mas esse não é o ponto aqui).
E é horrível.


Seus atributos são um lixo. Ele aprende golpes terríveis. Ele existe apenas para envergonhar você por seus fracassos. Numemon não é apenas uma evolução ruim — é o jogo olhando fixamente nos seus olhos e dizendo: "Você fez isso." Então cuide bem do seu Digimon. Alimente-o. Deixe-o descansar. Mas acima de tudo… gerencie o cocô. Não estou brincando quando digo isso: se seu Digimon precisa fazer cocô, você larga tudo e corre para o banheiro mais próximo. Você deve manter um mapa mental das localizações de banheiros a todo momento. Eu nunca joguei outro jogo onde eu estivesse tão hiperconsciente da logística de cocô. Nunca.

Eu constantemente me preocupava quão longe estava do banheiro mais próximo, quanto tempo levaria para chegar lá, e se eu poderia arriscar mais uma tela de exploração antes que o desastre acontecesse. Explorar novas áreas era genuinamente estressante — não por causa dos inimigos, mas porque eu não sabia onde ficava o banheiro mais próximo, e meu Digimon absolutamente decidiria soltar um barro no pior momento possível. Não estou exagerando quando digo que isso me deixava ansioso.

Digimon World é um jogo profundamente, profundamente estranho.

Mas ok — você aprendeu a criar seu Digimon corretamente. E não, seu Digimon não vira SkullGreymon porque você o instigou errado. Não aqui. Em Digimon World, SkullGreymon acontece quando você faz muitas coisas certas. Então não seja preguiçoso — especialmente com a caquinha. Mas tudo bem. Você tem a parte parental sob controle. O que mais há para fazer?


Bem, primeiro, você pode batalhar com Digimons selvagens. Não pela glória, não por XP — por dinheiro. Os ganhos de atributo em combate são uma piada. Você ganha, o quê, +80 HP em uma sessão de treino e talvez +7 HP se você der sorte. Mas o dinheiro importa. Muito. Assim como na vida.

Por que você precisa de dinheiro? Primeiro e acima de tudo: comida. Porque uma vez que seu Digimon atinge o estágio Adulto, ele come como um sobrevivente de guerra. Quando atinge o Perfeito, você juraria que é um senhor feudal dando um banquete enquanto o resto do Mundo Digital passa fome fora dos muros do castelo. E o peso importa para a evolução. Na maioria dos casos, quanto mais pesado seu Digimon estiver, melhor. Então sim — soque comida no bastardinho o máximo possível. E enfiar comida custa dinheiro. Carne digital não é de graça. Claro, o jogo te dá três pedaços de carne grátis por dia quando você está começando, mas isso rapidamente se torna risivelmente insuficiente. 

Claro, o dinheiro também vai para as coisas de RPG de sempre: itens de recuperação, curas de status, utilidades. Tudo bem. Esperado. Mas também compra o item mais importante de todo o Mundo Digital: banheiros portáteis. Uma vez que você pode estocar essas invenções milagrosas, você está finalmente livre da tirania dos banheiros fixos. Seus pesadelos com cocô acabaram. Seu Digimon pode fazer cocô em qualquer lugar, e você não está mais em prisão domiciliar ao banheiro mais próximo.

As algemas do cocô foram quebradas.
Dobby é um elfo livre.

E é neste momento — quando você percebe que a forma definitiva de progressão em Digimon World não é poder, ou atributos, ou evolução, mas logística de cocô — que você realmente o quanto Digimon World é um jogo muito, muito estranho. Ok. Agora você sabe como criar seu Digimon, e está finalmente livre da tirania do cocô. Tudo bem. E agora? Bem, é aqui que o design de nível entra.


Porque diferentemente de jogos como MONSTER RANCHER, onde você cria sua criatura, luta e… é basicamente isso, Digimon World também tem um forte componente de exploração e construção de mundo. A premissa central é simples: algo fez com que Digimons por toda Ilha Arquivo abandonassem a cidade, e seu trabalho é trazê-los de volta, um por um.

Então você percorre a ilha, encontra esses Digimons e os recruta para sua cidade em reconstrução. Às vezes isso significa ajudá-los em uma missão. Outras vezes, você só tem que sentar a porrada neles. Você sabe — assim como na vida real. É assim que as cidades crescem em primeiro lugar: você recruta cidadãos lavando o chão com a cara deles. Honestamente, não sei por que isso nunca foi uma funcionalidade no SIM CITY 3000. Limitações de hardware, suponho.

Cada Digimon que você recruta adiciona algo novo à cidade. Palmon atualiza sua fazenda de carne (sim, uma planta senciente plantando carne — isso é uma coisa muito Digimon). Centaurmon abre uma clínica para curar seu Digimon. Monochromon abre uma loja — "A" loja — a bendita que vende banheiros portáteis. Todos louvem nosso salvador branco e cinza. Ver a cidade crescer lentamente, novos edifícios surgindo, Digimons vagando e fazendo suas rotinas… é genuinamente satisfatório. Dá aquela mesma vibe de recompensa de SUIKODEN 2, onde o progresso não é apenas números subindo, mas um lugar lentamente voltando à vida.


Agora, aqui está a coisa: os requisitos de recrutamento podem ser imprevisíveis. Alguns Digimons são basicamente grátis — você fala com eles, talvez vence uma luta, e pronto. Outros, porém, têm condições muito específicas para sequer aparecerem. E algumas dessas condições são muito específicas. Isso imediatamente me deu flashbacks do Vietnã de REISELIED: Ephemeral Fantasia. Felizmente, não é tão ruim.

Primeiro, porque você não precisa estar na tela exata, no dia da semana exato, segurando o item exato, enquanto a lua está retrógrada. Pq vai tomar no cu, Konami, que puta ideia de girico que vocês tiveram naquele jogo, heim? Mas tá, eu já falei daquela desgraça, o que importa aqui é que até os requisitos mais severos ainda são razoáveis. Por exemplo, Ninjamon só aparece à noite, em uma área específica, depois que você recrutou um certo número de residentes da cidade. Isso é obscuro, sim — mas não é impossível.

Segundo — e isso é crucial — mesmo se você estiver jogando completamente no escuro e não tiver ideia de quais são os requisitos mais complicados, sempre há algo para fazer em qualquer área dada. Você pode recrutar apenas os Digimons mais básicos no começo, claro, mas ainda está progredindo. Você ainda está desbloqueando serviços, instalações e novas oportunidades. Então não — felizmente, isso não é o pesadelo de REISELIED: Ephemeral Fantasia de novo.

É um tipo de pesadelo totalmente diferente.

Coelamon, por exemplo, está sempre nessa praia na parte da tarde

Ok, tudo soa bom demais. Esperto demais. Charmoso demais. E é aqui que o jogo puxa uma cadeira, limpa a garganta e pede para você se sentar para fazer um pouco de contas. Então… hora da matemática. Galera de humanas, nos vemos na próxima.

Primeiras coisas primeiro: o tempo em Digimon World é brutal. Um dia completo no jogo passa a uma taxa de um minuto da vida real a cada hora de jogo, o que significa que cada dia dura exatamente 24 minutos reais. Agora vamos detalhar a progressão:

  • Baby → Rookie: aproximadamente 1 dia completo no jogo.
  • Rookie → Champion: cerca de 3 dias no jogo.
  • Para realmente explorar a File Island sem ter sua bunda digital chutada, você vai querer, como regra geral, por volta de 300 em cada atributo e cerca de 3000 HP. Chegar a esse ponto adiciona aproximadamente mais 3 dias no jogo de treino focado.

Então, de bebê recém-nascido a "ok, agora eu posso realmente jogar o jogo", você está olhando para cerca de 7 dias no jogo. São 168 minutos reais. Pouco menos de três horas. Até aqui, tudo bem. Você está jogando um jogo de criar monstros. Criar o monstro é o jogo. Sem reclamações aqui.

Exceto que…

Um Digimon vive por cerca de 15 dias no jogo antes de morrer de velhice e reverter para um ovo. Um pouco mais se vc fizer ele chegar a evolução Ultimate, mas não tanta coisa assim também. Quando isso acontece, não é como vc começasse o jogo do zero, você mantém:

  • Técnicas aprendidas
  • Dinheiro
  • Progresso do mapa (caminhos desbloqueados e etc)
  • Digimons recrutados e instalações

Então você não perde tudo. Mas seu parceiro realmente volta à estaca zero. O que significa que a matemática bruta fica assim:

  • ~7 dias criando e preparando seu Digimon
  • ~8 dias realmente usando-o antes dele tombar e morrer

Em termos do mundo real:

  • Cerca de 3 horas preparando seu Digimon
  • Para cerca de 3 a 3½ horas de exploração e combate efetivos

Antes de começar todo o processo de novo. E é aqui que Digimon World começa a rachar. Porque repetição é ok. Repetição é até esperada em um simulador de criação. Mas aqui, a proporção está errada. O jogo pede que você invista uma enorme quantidade de tempo apenas para alcançar o nível funcional básico, só para puxar o tapete de você justamente quando as coisas finalmente começam a fluir. De novo. E de novo. E de novo. Em algum ponto, você para de se sentir como um treinador nutrindo um laço, e começa a se sentir como um funcionário refazendo treinamento obrigatório de integração a cada três horas porque o RH insiste.

Suponha que uma dungeon em um RPG leve cerca de três horas e meia para completar — o que, honestamente, não é um número absurdo. Muitos RPGs ficam bem nessa marca. Agora imagine que antes que você tenha permissão para pisar dentro daquela masmorra, o jogo exige que você grinde por três horas seguidas.

Não progredindo na história.
Não fazendo missões secundárias.
Nem mesmo explorando significativamente.
Apenas grindando.
Entre em batalha. Aperte botões. Vença. Repita.

Você praticamente pode desligar o cérebro. Seu polegar vai no piloto automático, apertando A, X, clicando o mouse ou — se estivermos nos sentindo particularmente amaldiçoados — se debatendo pela sala porque controles de movimento existem (temo a chegada do design de RPG da era Wii, mas divago).

Três horas disso. Nesse tempo, você poderia:

E você TEM QUE fazer isso antes de cada masmorra. Pelo menos meia dúzia de vezes, se você já sabe exatamente o que está fazendo. Agora me diga, sinceramente... isso parece divertido? Porque eu não acho, nem remotamente. E essa é a falha estrutural central de Digimon World.

Eu não posso dizer que consigo realmente entender esse sistema de combate, pq não existe nenhuma vantagem usar qualquer outro comando senão pedir pra atacar. Pedir para pegar distancia, mesmo que seu digimon tenha ataques a distancia, só vai fazer você tomar um hit de graça enquanto se afasta e aumenta as chances de errar

Todo o resto é genuinamente bom. Os gráficos são muito além do apenas adequado para um título de PS1. Conseguir Digimons diferentes é sempre emocionante. O jogo merece respeito real por não se apoiar muito no anime (a Bandai podia facilmente ter atrasado alguns meses o lançamento pegar o anime, ao invés disso o jogo foi lançado dois meses antes) e, em vez disso, ser corajoso o suficiente para fazer sua própria coisa — uma coisa estranha, experimental, profundamente obcecada por cocô, mas sua própria coisa mesmo assim. Realmente não há outro jogo como Digimon World, e tie-ins licenciados quase nunca correm riscos assim. Só por isso, ele merece elogios. E eu o elogio. Genuinamente.

Mas…

Bandai. Meu docinho de coco.
Será que ninguém — absolutamente ninguém — nunca se sentou e realmente testou essa proporção entre grind de atributos e exploração?

Porque o problema não é dificuldade. Não é complexidade. Não é nem repetição. É que o jogo pede um investimento inicial exaustivo TODAS AS VEZES apenas para chegar ao ponto onde permite que você realmente jogue as partes interessantes de novo. Digimon World não falha por causa de más ideias. Ele falha porque nunca aprendeu a respeitar o tempo do jogador.


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