quarta-feira, 30 de abril de 2025

[#1464][Mar/2000] MDK2

Não faz tanto tempo assim que eu não apenas mencionei a Shiny Entertainment, como o fiz duas vezes, na verdade. A primeira enquanto mergulhavam na estranheza distorcida que é MESSIAH, e outra enquanto desenterrava o túmulo digital de EARTHWORM JIM 3D, uma franquia que eles começaram mas não terminaram. 

Em ambos os casos, eu disse a mesma coisa: a Shiny é um estúdio cheio de ideias ousadas, selvagens, do tipo "acabamos de usar dorgas e aqui está o que vimos"... mas quando chega a hora de realmente colocar essas ideias em prática, de moldá-las em algo jogável... Digamos apenas que a execução deles não acompanha o quão boas as ideias são no papel.

O que nos leva então a MDK, outro jogo que prova — mais uma vez — o talento da Shiny para sonhar alto e tropeçar espetacularmente na entrega. É estiloso, é estranho, é diferente de tudo o que já foi lançado na época... e também é uma gloriosa mistura de escolhas de design, mecânicas malfeitas e mudanças de tom bizarras. Mas eu já falei desse jogo antes — dois anos atrás, para ser mais preciso — , elogiei seu estilo, venci sua execução e, por fim, o classifiquei como um dos maiores exemplos da Shiny Entertainment de "ideias brilhantes, mal domesticadas". Mas agora... agora é hora de falar de MDK 2. E é aqui que as coisas ficam interessantes.

Veja, em algum momento entre o lançamento do MDK e sua continuação, a Interplay olhou para o histórico do Shiny e disse: "Ei, ótimos conceitos, pessoal... agora, por favor, tirem as mãos das nossas coisas". Então eles pegaram os direitos da sequência e os entregaram para um estúdio novo com apenas alguns RPGs para PC em seu nome. Alguns pequenos desenvolvedores canadenses chamados... BioWare.


Sim. AQUELA BioWare. A Mass Effect, Dragon Age, “nós-vamos-arruinar-sua-vida-com-trauma-emocional” BioWare. Mas isso foi antes de tudo isso — antes das rodas de escolha moral, das óperas espaciais e das discussões na internet sobre o rosto de Tali. Naquela época, eles ainda eram jovens inexperientes, ainda estavam com fome e, de alguma forma, conseguiram esse bico de fazer um jogo de tiro de ficção científica, de ação e comédia, baseado na viagem de ácido de outra pessoa.

Então agora temos um experimento muito peculiar em mãos: o que acontece quando você pega o vômito cerebral selvagem e cheio de cafeína da Shiny Entertainment... e o entrega a um estúdio que não só tem capacidade criativa, mas também a disciplina necessária para fazê-lo funcionar? Isso… é MDK 2. E estamos prestes a descobrir o quão estranhas, maravilhosas e possivelmente competentes as coisas podem ficar quando a loucura encontra o método.

Kudos onde kudos são devidos: a BioWare salvou o que pôde da gloriosa bagunça que herdou. Em vez de tentar "consertar" o estranho senso de humor de Shiny, eles se apoiaram nele. O tom cartunesco e pastelão — uma assinatura da Shiny Entertainment — não foi apenas preservado, mas também aumentado a décima potencia.

A apresentação inteira parece que você está folheando uma história em quadrinhos dos anos 90. Se o original não sabia se queria ser badass e fodão ou uma grande tolice pastelona (e tenta ser os dois ao mesmo tempo), em MDK 2, o jogo sabe que é ridículo e aceita de braços abertos. Até mesmo o traje MDK — antes um protótipo elegante e trevosão Cool™ dos anos 90 — agora parece uma fantasia de super-herói da Shopee.

Narrativamente, a BioWare fez uma escolha inteligente: em vez de tentar transformar MDK em algo que ele não é — ficção científica séria, ação crua — eles abraçaram a dinâmica de três personagens e construíram a história em torno disso. Cada personagem não é apenas jogável, mas também narrativamente distinto:

  • Kurt Hectic, seu relutante zelador que virou herói, agora está ainda mais relutante e muito mais neurótico. Ele está praticamente canalizando Marvin, o Androide Paranoico, mas com um sniper rifle preso à cabeça. Suas seções transbordam sarcasmo impassível, dúvidas sobre si mesmo e uma boa dose de "só eu estou reparando do quão ridiculo tudo isso é?"
  • Dr. Fluke Hawkins é o Dr. Morty 20 anos do Ricky nascer. Cientista louco por excelência, e sua jogabilidade reflete isso. Seus trechos narrativos são cheios de jargões técnicos, invenções fracassadas e um desrespeito impressionante pela segurança pessoal — tudo apresentado como se ele estivesse fazendo o universo um favor ao existir.
  • E então tem o Max. Um cão de seis patas que mastiga charutos, usa um jetpack e fala em frases machistas como se fosse filho bastardo do Duke Nukem. A narrativa dele? Explodir coisas. Por que? Porque ele pode.

A BioWare usou esse formato de forma inteligente para manter as coisas dinâmicas e variadas, mudando os tons com a perspectiva de cada personagem. Num minuto você está rastejando por corredores alienígenas em modo furtivo, no outro você está voando através de explosões com um cachorro que parece que deveria estar concorrendo a governador do Texas.


Mas talvez o toque mais BioWare seja que, por trás de toda a maluquice, o jogo tem um arco próprio. É bobo, claro, mas ele realmente se desenvolve em direção ao clímax, algo que o primeiro MDK meio que esqueceu de fazer em sua névoa de armas estranhas e inimigos mais malucos ainda. A BioWare deu estrutura ao MDK 2 — não demais para acabar com a diversão, mas o suficiente para fazer parecer que você está jogando uma experiência deliberada.

Resumindo: a BioWare pegou o universo absurdo de Shiny, injetou nele seu próprio senso de ritmo narrativo, foco nos personagens e estrutura limpa... e ainda conseguiu fazer com que parecesse igualmente uma grande tolice. Algo que, como todos sabemos, eles apenas ficariam melhores ainda em fazer nos próximos anos.

Em termos de jogabilidade, a BioWare conseguiu algo ainda mais impressionante: eles não apenas escreveram um jogo melhor, como também um game design melhor. Minha maior reclamação sobre o MDK original — além do tom incoerente e daquela estranha obsessão com distorção de textura — era o quão chata a maior parte da jogabilidade realmente era. Sim, as seções de sniper eram legais e inovadoras para a época, mas e o resto? Ondas intermináveis ​​de "segure tiro e mate tudo que spawnar" em areias amplas e vazias. Parecia menos um jogo de tiro e mais um teste de estresse para o botão do mouse.

Mas no MDK 2, a BioWare arregaçou as mangas e disse: "Tudo bem, vamos transformar isso em um jogo de verdade". E eles fizeram! De repente, temos plataformas! Há resolução de puzzles! Há leve design de verdade! Até mesmo o combate é mais deliberado — snipping não é mais um gimmick, é algo que vc tem que ativamente integrar no meio das lutas de uma forma realmente envolvente e, ouso dizer, desafiadora.

Agora, cada personagem joga como se tivesse seu próprio minijogo, com mecânicas, pontos fortes e, sim, limitações únicas que forçam você a pensar em vez de apenas segurar o tiro e rezar.


Kurt Hectic está de volta com seu icônico traje de bobina e seu rifle de sniper montado na testa, mas, dessa vez, ele é mais do que apenas um cara estranho de spandex que ocasionalmente dá zoom nos olhos dos alienígenas. Foram adicionadas sessões de plataforma para fazer melhor uso do seu traje planador, e como eu disse antes o uso do snipper foi realmente colocado de uma forma interessante aqui.

Depois temos o Doc, a jogabilidade dele é menos sobre reflexos e mais sobre tentar passar de fase com o que estiver por perto. Ele não tem armas, ele tem dispositivos. Você cria armas bizarras na hora usando torradeiras, fita adesiva e, presumivelmente, arrependimentos. Suas seções são mais parecidas com um point'n click: resolva puzzles ambientais, invente ferramentas bizarras e, ocasionalmente, ria loucamente enquanto sua mais nova armadilha mortal sai pela culatra de maneiras hilárias. É como se a BioWare tivesse enfiado THE INCREDIBLE MACHINE em um jogo de tiro em terceira pessoa e dito: "Te vira, nerdão".

E então tem o Max. Sua jogabilidade é pura ação, mas até isso ganhou um toque especial. Em vez de abater hordas de inimigos sem pensar, agora você tem que gerenciar munição (porque, surpresa, você pode ficar sem) e usar seu jetpack de combustível limitado. É um teste de reflexos e disciplina de munição, com resultados satisfatórios.


O que você tem aqui não é apenas “o mesmo jogo, mas mais bonito”. São três estilos de jogo distintos, todos interligados em uma campanha fluida. A BioWare fez algo que a Shiny nunca conseguiu: eles refinaram o caos. Eles fizeram do MDK 2 mais do que apenas uma ideia — eles fizeram dele um jogo que valia a pena jogar, não apenas acenar com a cabeça com um "tá, entendi o que eles tentaram fazer aqui"

Então sim — MDK 2 é um jogo muito melhor que o original. Roda melhor, tem um visual melhor, joga melhor e foi desenvolvido para PC e Dreamcast, felizmente livre das amarras técnicas do hardware "eu-morro-se-você-olhar-muito-pra-mim" do PlayStation 1. Mas... mas é claro que tem um "mas", né?

Porque aqui está a questão: MDK 2 é melhor, sim — mas será que é ótimo? É o tipo de jogo sobre o qual se fala em tom reverente em fóruns retrô e ensaios em vídeo intitulados "O Gênio Oculto dos Jogos de Tiro em Terceira Pessoa"? É um pilar do gênero? Bem... não. Não realmente


A versão de Dreamcast (que é a versão original, a de PC é um port) tem controles estranhos: como o videogame da Sega não tem dois analógicos, você anda nos botões ABXY, mira com o analógico, atira com o R e pula com o L. Essa é uma configuração bastante desconfortável, especialmente quando vc precisa ficar alternando entre o rifle de snipper (com os botões direcionais) enquanto os inimigos não dão respiro pra vc mirar. É administrável, claro, mas nunca intuitivo. Você está constantemente lutando contra os controles, especialmente nos segmentos de plataforma mais exigentes.

O que nos leva ao segundo problema: MDK 2 é difícil e não pelas razões certas. Não um difícil "divertido e desafiador" — é mais como um difícil "acabei de perder uma hora porque eu odeio esses controles". A curva de dificuldade não é tão curva, mas sim uma facada. As lutas contra chefes são relativamente longas e exigem usar o snipper para acertar pontos fracos - o que é bom - enquanto eles não param de spawnar mobs que não vão te deixar mirar, especialmente com o quão desajeitados os controles são -  o que é ruim. 


E some a isso que não existe save no meio da fase na versão para Dreamcast, a morte não é apenas um contratempo — é um recomeço completo. Mas não é como se no PC fosse tão melhor assim, salvar com apenas 15% da sua vida não vai te fazer nenhum milagre também.

Então, sim, o estilo de história em quadrinhos é ótimo. O humor funciona mais sim do que não. Os personagens são divertidos, o mundo é criativo... mas todo esse refinamento não esconde o fato de que MDK 2 ainda tem uma essência superficial. Não há um sistema de progressão real, nem upgrades, nem motivo para revisitar os níveis. Depois de terminar o jogo é improvável que você volte para repetir. É uma experiência única. Chamativa, as vezes inteligente, mas não duradoura.


Então MDK 2 é um jogo que veio e se foi. Recebeu boas críticas, vendeu bem e foi prontamente esquecido por todos, exceto por um grupo de fanáticos por Dreamcast e cosplayers do Kurt. Não influenciou futuros jogos de tiro em terceira pessoa. Não lançou uma franquia. Não impulsionou o gênero. Apenas... existiu. Respeitavelmente. De forma peculiar. Por um breve período.

MDK 2 não é um pilar do gênero de tiro em terceira pessoa. Mas é um experimento fascinante. Uma bagunça ousada, caótica e algumas vezes brilhante, criada por um estúdio que viria a ser conhecido por dilemas morais e subtramas românticas do que por comandos caninos de seis patas. Mas hey, todo mundo tem que começar de algum lugar, e certamente existem formas BEM piores de se começar nessa indútria vital... né não, Naughty Dog?

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 147 (Janeiro de 2000)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 064 (Julho de 1999)


EDIÇÃO 073 (Abril de 2000)


EDIÇÃO 076 (Julho de 2000)


EDIÇÃO 077 (Agosto de 2000)









EDIÇÃO 081 (Dezembro de 2000)