sábado, 26 de abril de 2025

[#1460][Nov/1999] GAROU: Mark of the Wolves


Criar uma continuação para um jogo de luta é um ato mais complicado do que lutar contra um chefe apelão da SNK que lê os inputs que aperta no controle antes que o jogo execute eles na tela. Ou seja, todos eles.

CARA, TÁ TUDO BEM?

Hã, semana dificil. Mas enfim, eu dizia que de um lado, existe a pressão para inovar — introduzir novos personagens, novas mecânicas e visuais atualizados que justifiquem uma nova entrada. Mas, se você exagerar, corre o risco de alienar a própria base de fãs que apoiou o original. Mude pouco, e o jogo parece um patch glorificado, mais do mesmo com um novo número estampado na caixa. Elencos de jogos de luta são um território especialmente complicado: remova um lutador querido e você ouvirá o clamor a quilômetros de distância; mantenha todos e adicione muitos rostos novos, e de repente sua tela de seleção de personagem parece um jogo de Onde Está o Wally? É um quebra-cabeça impossível de se vencer— ou pelo menos parece um.


Entre em cena TEKKEN 3, que resolveu esse enigma não com força bruta, mas com um truque narrativo inteligente. Ao avançar a linha do tempo vinte anos, TEKKEN 3 permitiu que seus personagens clássicos permanecessem no cânone, apenas mais velhos e talvez um pouco desgastados por seus anos no ringue. Ao mesmo tempo, introduziu uma nova geração de lutadores — muitos deles sucessores diretos, filhos ou alunos do elenco anterior. Isso preencheu a lacuna maravilhosamente: os fãs não sentiram que seus favoritos haviam sido descartados; eles simplesmente cresceram, e seu legado continuou através de sangue novo. É uma aula magistral de evolução sem apagar o passado, que mostrou como uma sequência de jogo de luta pode honrar suas raízes e, ao mesmo tempo, plantar novas.

No outro lado do espectro, temos STREET FIGHTER 3: The New Generation que tentou ambiciosamente inaugurar uma nova geração de lutadores e tropeçou na execução da passagem de bastão emocional. A Capcom balançou o pêndulo longe demais, deixando de lado quase todos os personagens icônicos em favor de um elenco quase inteiramente novo. Ryu e Ken eram os únicos rostos familiares em um mar de desconhecidos e, embora os novos lutadores tivessem seus méritos, a ruptura abrupta com o legado deixou os fãs de longa data se sentindo desconectados. A mecânica era de ponta, mas a alma — enraizada na familiaridade e continuidade dos personagens — parecia desconexa. Foi uma ideia ousada, mas não foi um sucesso.


Isso considerado, chegamos então a Lobo Esfomeado: Marca dos Lobões, que decidiu se inspirar em TEKKEN 3 ao realizar o salto geracional. Ao envelhecer a linha do tempo e introduzir Terry Bogard como um mentor em vez de um lutador principal, Garou conseguiu evoluir a narrativa e manter sua ligação emocional com o legado de FATAL FURY. Personagens como Rock Howard, filho do antagonista da série, Geese Howard, não só trouxeram uma jogabilidade nova, como também carregaram a bagagem dramática da era anterior. Essa abordagem distanciou Garou elegantemente de THE KING OF FIGHTERS — que já havia canibalizado grande parte do elenco de Fatal Fury — e reafirmou sua identidade. Não era apenas uma sequência; era uma passagem de bastão que respeitava seu passado enquanto construía um novo futuro.

E essa lufada de ar fresco era exatamente o que a SNK precisava desesperadamente. No final dos anos 90, Fatal Fury havia se tornado redundante. Apesar da alta qualidade dos títulos da série REAL BOUT FATAL FURY, a série havia perdido sua identidade — seu elenco havia sido quase totalmente absorvido por THE KING OF FIGHTERS, que oferecia um sistema de equipes mais dinâmico e um apelo mais amplo. Por que jogar Fatal Fury quando KOF tinha os mesmos personagens, além de mais mecânicas e variedade? Parecia um eco de algo que já foi importante. A franquia estava em uma tremenda alhada, criativamente falando.


É por isso que Garou: Mark of the Wolves foi mais um revival do que apenas uma sequência. O jogo não tenta competir com KOF em seus termos — em vez disso, reiniciou a marca Fatal Fury com um novo tom, novos rostos e um estilo de jogabilidade mais enxuto e focado, que lhe deu um tom próprio novamente. 

O que era importante porque nesse mesmo período a sua rival Capcom conseguia manter suas franquias distintas. STREET FIGHTER ALPHA 3  enfatizou um jogo baseado em combos e com uma estética  anime, enquanto STREET FIGHTER 3: 3rd Strike - Fight for the Future se inclinou para um sistema mais técnico, com mais parry, e um tom mais agressivo. E nenhum dos dois jamais se pisou na area de MARVEL VS CAPCOM: Clash of Superheroes que era seu próprio espetáculo caótico e baseado em duplas — um rival direto do formato de equipes de KOF e um exemplo claro de como a Capcom sabia como dividir sua escalação de jogos de luta sem confundir identidades. A SNK precisava de Garou não apenas para sobreviver, mas para se lembrar de quem era — e por um momento glorioso, se lembrou.


Todos os cenários tem esse card introdutório animdo, coisa mais linda

Nossa história aqui é que dez anos se passaram desde a morte de Geese Howard, o infame chefão do crime que outrora governou South Town com punho de ferro. Após a queda de Geese, a cidade começou a se reconstruir, mas as cicatrizes da corrupção e da violência nunca cicatrizaram completamente. Uma nova cidade, Second Southtown, renasceu das cinzas — mais próspera na superfície, mas ainda infestada de crimes e torneios de luta clandestinos.

Nesta nova era, Kain R. Heinlein, uma figura misteriosa e carismática, assumiu o controle nos bastidores. Ele organiza um novo torneio de luta chamado "King of Fighters: Maximum Mayhem" (não confundir com o torneio King of Fighters original), convidando os lutadores mais fortes do mundo. Os objetivos de Kain são obscuros no início, mas sugere-se que ele tenha uma ambição maior, quase ideológica: reconstruir a sociedade com sua própria visão de poder e ordem.


No centro da história está Rock Howard, filho de Geese Howard. Após a morte de seu pai, Rock foi acolhido e criado por Terry Bogard, o mesmo homem que derrotou Geese. Sob os cuidados de Terry, Rock se tornou um jovem lutador determinado a forjar seu próprio destino, longe do legado sombrio de seu pai. No entanto, Rock está em conflito com sua linhagem e assombrado por perguntas sobre seus pais, especialmente sua mãe desaparecida.

Rock entra no torneio Maximum Mayhem em busca de respostas — especialmente depois que Kain revela que sabe o que aconteceu com a mãe de Rock. Ao longo do torneio, Rock enfrenta outros novos lutadores, muitos dos quais têm laços com a era antiga (por meio de linhagens, mentorias ou vinganças), simbolizando o choque entre gerações.


A história culmina com Rock derrotando Kain, mas este revela que sua oferta a Rock não foi apenas manipulação — ele realmente acredita que Rock poderia ajudar a mudar o mundo destruído. No final agridoce, Rock opta por deixar Terry seguir seu próprio caminho, sugerindo uma separação emocional, mas inevitável, entre mentor e aluno. É uma passagem de bastão, mas também um doloroso reconhecimento de que Rock não pode viver sob a sombra de Terry para sempre.

Mecanicamente, um dos aspectos mais fortes que diferenciavam Garou: Mark of the Wolves de Real Bout Fatal Fury e The King of Fighters são suas mecânica de jogo. A SNK não apenas reformulou a franquia — ela a redesenhou quase do zero.


1. Sem Sistema de Planos (Diga Adeus ao Gimmick Clássico de Fatal Fury)

Os jogos Real Bout — e os títulos anteriores de Fatal Fury — eram conhecidos por seu "sistema de planos", em que as lutas aconteciam em dois planos (primeiro plano e segundo plano), permitindo que os jogadores se esquivassem dos ataques pulando entre eles. Essa era uma mecânica característica da série, mas na época de Real Bout, ela havia se tornado desajeitada e um tanto ultrapassada, especialmente diante de jogos de luta mais técnicos e realistas, como Street Fighter Alpha e KOF.

Garou abandonou isso completamente. Chega de múltiplas linhas — apenas um plano 2D plano. Isso imediatamente tornou o jogo mais focado e moderno, e deu às lutas um ritmo mais preciso e deliberado. Foi uma mudança do espetáculo para a precisão.

O personagem brasileiro do jogo tem o nome mais brasileiro ever: RHUSHWOOD BUNDA. Só na minha rua tem uns 15 Rhushwood, e que brasileiro não é da família BUNDA, né?

2. Just Defend (A Defesa do Homem Moderno)

Uma das mecânicas que definem Garou é a Just Defend, a resposta da SNK ao sistema de parry de STREET FIGHTER 3: 3rd Strike - Fight for the Future. Se um jogador bloquear no momento exato em que um ataque acerta, ele "Just Defend" — isso anula o dano residual, restaura um pouco de vida e deixa o defensor com uma ligeira vantagem de alguns frames de animação no qual ele pode contraatacar. 

3. Sistema T.O.P. (Mecânica de Comeback Customizada)

A coisa mais única de Garou é o sistema Tactical Offense Position (T.O.P.) e esse é um diferencial fundamental. Antes de cada partida, os jogadores escolhem uma seção de sua barra de vida — inicial, intermediária ou final — onde, uma vez alcançada, ganham um power-up: aumento de ataque, regeneração gradual de vida e acesso a ataques T.O.P. especiais. Quando essa parte da barra é esgotada, o jogador perde acesso as vantagens T.O.P.

É uma mecânica bem interessante porque permite que os jogadores personalizem quando querem ser mais fortes, abrindo espaço para estratégias antes mesmo do primeiro soco ser dado. Você pode escolher saindo com todo gás - ou então se preparar para reagir ao períodio T.O.P. do oponente, é um cenário taticamente bastante rico.

Kim Jae Hoon, por exemplo, é o discípulo de Kim Kapwaan

Em resumo, Garou: Mark of the Wolves desmontou a série Fatal Fury e a reconstruiu do zero, criando algo mais enxuto, rápido e competitivo. Manteve o estilo e o refinamento característicos da SNK, mas eliminou os excessos. O resultado é um jogo que se diferenciava da ostentação de Real Bout e das lutas em equipe de KOF — e que ainda se mantém como um dos jogos de luta mais refinados da SNK.

Só que Garou: Mark of the Wolves não apenas modernizou sua jogabilidade — ele também evoluiu visualmente para algo comparável aos jogos 2D mais impressionantes de sua época. Se o compararmos a ART OF FIGHTING 3: The Path of the Warrior — a entrada visual mais impressionante da SNK até então — fica claro o quanto o estilo de Garou havia se tornado mais refinado e pé no chão. Art of Fighting 3 já era uma maravilha técnica, conhecido por sua animação rotoscópica e movimentos suaves como manteiga, mas tinha uma rigidez e exagero que se inclinavam mais para o espetáculo do que para a coesão. Garou pegou essa base e a refinou, suavizando as arestas e focando no realismo tanto na anatomia quanto no movimento dos personagens. O resultado foi um elenco que não apenas se move suavemente, mas também parece vivo, com animações que entregam cada soco, chute e finta com clareza e impacto impressionantes.


De certa forma, Garou fez para a SNK o que BREATH OF FIRE 4 fez para os RPGs da Capcom. Ambos os jogos surgiram no crepúsculo da era 2D e levaram suas respectivas mídias ao limite artístico. BoFIV impressionou os jogadores com seus cenários pitorescos e sprites expressivos, criando um mundo que parecia artesanal e vivo. Da mesma forma, Garou trouxe a estética desenhada à mão da SNK para a era moderna com seus personagens meticulosamente sombreados e cenários ricamente detalhados. 

O tom visual é mais maduro, menos cartunesco — personagens como Rock Howard e Hotaru não são apenas legais; eles pertenciam a um mundo coeso. Os cenários não são apenas bonitos — eles tem sabor narrativo, profundidade e atmosfera (algo que a SNK sempre foi muito boa em fazer, alias). É o mesmo tipo de salto de "bons sprites" para "arte em movimento" que BREATH OF FIRE 4 representou para os RPGs de fantasia. Com Garou, a SNK provou que jogos de luta 2D ainda podiam ter um visual vanguardista — até mesmo artístico — na era dos recursos poligonais.

O chefe final tem a barra de energia inteira como T.O.P., é legal ver que a SNK ao menos deu uma justificativa mecanica para ele ser apelão e não apenas "vou te roubar na cara dura mesmo e fodasse" como nos seus outros chefes finais

De muitas maneiras, Garou: Mark of the Wolves se destaca como um exemplo clássico de como evoluir uma série de jogos de luta de longa duração sem perder sua alma. Enquanto muitas sequências lutam para equilibrar familiaridade e inovação — correndo o risco de estagnação ou alienação —, Garou executou a técnica de andar na corda bamba com precisão. Ao envelhecer a linha do tempo e introduzir novos personagens conectados à velha guarda, honrou o legado de Fatal Fury sem se prender a ele, uma lição que Street Fighter III aprendeu da maneira mais difícil. Mecanicamente, eliminou sistemas ultrapassados ​​como as batalhas multilinha de Real Bout, simplificou a jogabilidade para duelos 1v1 afiados e incorporou conceitos modernos como Just Defend e T.O.P. System, dando aos jogadores uma liberdade estratégica que parecia inovadora em comparação com a fórmula estabelecida de KOF.

Garou: Mark of the Wolves não foi apenas uma ótima sequência — foi uma ressurreição. Numa época em que Fatal Fury corria o risco de cair na irrelevância, engolido por seu próprio sucessor, King of Fighters, Garou redefiniu o que a série poderia ser por meio de uma evolução mecânica ousada, uma mudança geracional cuidadosa em seu elenco e algumas das mais belas artes 2D que o gênero já viu. Resolveu o quebra-cabeça impossível que tantas sequências de jogos de luta enfrentam: respeitar o passado sem se acorrentar a ele. Enquanto outros tropeçavam tentando forçar uma nova era, Garou fez com que parecesse natural — inevitável.


Frequentemente citado como um dos melhores jogos de luta da SNK (menos pela Ação Games, because dorgas), Garou é mais do que apenas uma maravilha técnica ou um refinamento de jogabilidade, Garou foi uma declaração: de que os jogos de luta 2D ainda tinham o poder de evoluir, de contar histórias através de cada soco desferido e cada cenário cuidadosamente pintado. Não apenas competiu com seus contemporâneos; superou-os, provando que inovação e tradição não precisam ser inimigas. Ao fazer isso, Garou: Mark of the Wolves não apenas estendeu a vida de Fatal Fury, como também o elevou à categoria de lenda.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 170 (Dezembro de 2001)








MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 070 (Janeiro de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 046 (Dezembro de 1999)


EDIÇÃO 049 (Janeiro de 2000 - Semana 3)